Se alguém tinha dúvidas de que mãe é quem cria, Val, a personagem principal de Que Horas ela Volta?, interpretada por Regina Casé, deixa isso escancarado. No novo longa da diretora Anna Muylaert (Durval Discos, É Proibido Fumar), que arrancou risos e palmas da plateia em sua estreia na mostra Panorama do Festival de Berlim, Casé interpreta uma empregada doméstica à moda antiga, daquelas que cozinham, lavam, passam, arrumam e ainda cuidam das crianças dos patrões como mães. Val jamais questionou sua posição - até que Jéssica (Camila Márdila), sua filha biológica, vem de Pernambuco para São Paulo prestar vestibular e abala as relações na casa da patroa da mãe.
Bem diferente de outros retratos do universo das empregadas domésticas no Brasil, Que Horas Ela Volta?, cativa por fugir dos clichês. Tudo no filme é sutil e leve apesar do drama familiar e social que permeia a história. "Foram 18 anos até chegar no roteiro final. A ideia surgiu quando tive meu primeiro filho e não quis contratar uma babá. Porque isso é um trabalho sagrado, mas considerado de segunda classe no Brasil", afirmou a diretora na coletiva de imprensa em Berlim.
Para Muylaert, o filme trata da arquitetura dos afetos e simboliza os estratos sociais na sociedade brasileira. A própria casa atua como um personagem na trama, na medida em que a divisão dos cômodos deixa claro o que Val pode ou não ter ou fazer. É um olhar para a classe média pela "porta da cozinha". Algumas das melhores cenas são, inclusive, de Val "controlando" e ouvindo conversas da cozinha.
Em uma atuação bem-humorada e impecável, Regina Casé lida com os paradoxos da vida de muitas domésticas do Brasil. É Val que abraça Fabinho (Michel Joelsas) quando ele não consegue dormir, é ela que o consola quando ele conta que levou um fora, mas a relação de cumplicidade do jovem com "a segunda mãe" (nome, aliás, que o filme recebeu em inglês) contrasta com a relação fria e distante que Val tem com a própria filha. As duas encarnam as idiossincrasias de Jéssica e Val tão bem que dividiram o prêmio de melhor atriz no Festival de Sundance, nos Estados Unidos.
A Jéssica de Márdila é uma menina segura de si e inteligente, mas foi privada da convivência com a mãe justamente pela dedicação incondicional dela ao trabalho. Jéssica relembra diversas vezes que recebeu apenas algumas visitas nos últimos dez anos. Ao ver a maneira como a mãe vive com os patrões, ela se revolta e enfrenta as ideias preconcebidas com pequenos e simbólicos atos de rebeldia. Jéssica senta com os patrões na mesa de jantar, dorme no quarto de hóspedes e não no de empregada e até vai parar na piscina da casa.
"Não precisava nada demais para explodir essa tomada de poder dela, um pulo na piscina era suficiente. Para mim, ela é uma heroína por tentar quebrar com essa educação de uma busca limitada em que você pode isso ou aquilo e tem que sempre que pedir permissão para tudo", explicou Márdila na coletiva.
Que Horas Ela Volta? teve uma forte presença de brasileiros em sua estreia em Berlim. O longa recebeu palmas durante quase todos os créditos. O filme já foi comprado para ser exibido nos Estados Unidos. "Na América Latina, ainda não tivemos muitos interessados, entendo que ele gere um constrangimento em países onde este tipo de situação seja comum", ponderou a diretora.
Muylaert demorou 18 anos para finalizar o roteiro e o filme é lançado em um momento que não poderia ser mais propício. Mudanças sociais importantes ocorrem em todo o país e muitos estão desconfortáveis com o que elas podem trazer, mas a diretora não teme críticas, ela apenas diz se sentir satisfeita de fazer parte da transformação: "O Brasil é um país escravagista. É óbvio que quem sente falta da empregada para levar leitinho quente à noite vai odiar o filme. É importante que as relações mudem, mas sem perder essa coisa do carinho. O amor de mãe dado por essas mulheres vale ouro".
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