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Rocky: Um Lutador | Os 40 anos da criação de um mito

Versão masculina de Cinderela, filme é hoje uma reflexão sobre novos comportamentos

21.11.2016, às 07H02.
Atualizada em 21.11.2016, ÀS 08H11

Ao receber o Globo de Ouro de melhor ator coadjuvante, por Creed – Nascido para Lutar, em janeiro, sob os aplausos de uma multidão de astros, Sylvester Stallone fez marejar os olhos da Hollywood Foreign Press Association, responsável pelo prêmio, e de todo o público que o assistia na TV, dizendo: “Quero dedicar este prêmio a meu amigo imaginário, Rocky Balboa, por ser o melhor amigo que alguém pode ter”. Neste 21 de novembro de 2016, o amigo imaginário do Stallone – de todos nós – comemora 40 anos de vida.

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Sua primeira exibição pública se deu há exatamente quatro décadas em Nova York, numa première onde foi chamado pelo crítico do The New York Times Vincent Canby de “faz de conta à moda dos anos 1930”. Cerca de 13 dias depois, em 3 de dezembro, ele estreou em circuito nacional nos EUA, recebendo de um mito da crítica americana, Roger Ebert, do Chicago Sun Times, cotação máxima e uma frase para abrir caminhos: “Stallone parece o jovem Marlon Brando”. Naquele momento, a escadaria do Museu de Arte da Filadélfia, por onde Balboa corre, embalado na trilha sonora de Bill Conti, virou História, sedimentando seu caminho por uma estrada de tijolos amarelos que o levaria a conquistar US$ 225 milhões nas bilheterias e três Oscars, filme, diretor (para o hoje subestimado John G. Avildsen) e montagem.

Em solo brasileiro, sua estreia, igualmente badalada, ocorreu em 7 de janeiro de 1977. À época, o decano da crítica nacional, Ely Azeredo, escreveu no Jornal do Brasil uma resenha laudatória, chamando o filme de “Cinderella marxista”, por representar uma espécie de conto de fadas social, “luvas de boxe em lugar de sapatinhos de cristal”. Por aqui, nos anos seguintes, celebrizou-se, pela televisão, a versão dublada de Balboa, na voz de um dos maiores atores deste país: André Filho, morto em 1997. Os graves no gogó de André realçavam a maneira mascada de Stallone falar.

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Parte das histórias que marcaram esse passado de glórias de Rocky: Um Lutador pelo mundo estão sendo revisitadas agora graças aos esforços de um fã, o documentarista Derek Wayne Johnson, em um par de filmes que chegam ao circuito nos próximos meses. Um se chama The King of Underdogs e é centrado na carreira de Avildsen como realizador (ele faria ainda a franquia Karate Kid), e, o outro, é 40th Years of Rocky – The Birth of a Classic, no qual passa em revista o processo de conversão de Stallone em um astro. Ali, Johnson apura com o eterno Rambo causos sobre a criação do boxeador que virou um sinônimo de superação.

Quando vendeu seu roteiro (escrito em três dias e meio, em decorrência da emoção vivida após uma luta de Muhammad Ali vista na TV) para a United Artists, sonhando protagonizá-lo, Stallone ouviu muito “Não!” e “Você não é o ator adequado” da indústria. Engravatados de Hollywood enxergavam nomes mais famosos do que ele como potenciais escolhas para viver o Garanhão Italiano: os mais cotados eram Robert Redford, Ryan O'NealBurt Reynolds e James Caan. Mas ele bateu o pé: só venderia o script se o papel fosse seu. Alcançou seu objetivo graças ao apoio dos produtores Irwin Winkler e Robert Chartoff. O orçamento inicial das filmagens do longa seria de US$ 2 milhões, mas eles reduziram esse valor ao meio a fim de amortizar riscos de ter um desconhecido como protagonista. Para que tudo desse certo, pensaram em atrizes em ascensão como Carrie Snodgress Susan Sarandon para viverem Adrian, mas quem levou a personagem foi Talia Rose Coppola Shire, irmã de Francis Ford, conhecida por O Poderoso Chefão partes I (1972) e II (1974). Para o lugar de Apollo, o Doutrinador, pensou-se no boxeador Ken Norton, mas quem ganhou o short com as cores e listas da bandeira dos EUA foi Carl Weathers.

Filmado em cerca de 18 dias de batente corridos, Rocky, um Lutador entrou em cartaz para ser um concorrente aos dólares acumulados tradicionalmente pelos exibidores durante as férias de Natal. Mas naquela época de contracultura política na veia – 1976 era, até ali, o ano de Taxi Driver, de Martin Scorsese -, marcada por filmes na Nova Hollywood (também chamada Easy Rider Genetation, termo usado para definir a turma de cineastas contestadores revelada nos EUA a partir de 1967), a saga de Balboa carregava um certo odor de naftalina, típico da era clássica do cinema americana. Houve quem o chamasse de “exercício de contrarreforma”, por propor a volta de velhos valores. Mas, o público ficou indiferente aos olhares suspeitos à ética do drama de Balboa: o primeiro Rocky foi um sucesso instantâneo. A ele se seguiram seis continuações, todas lucrativas. Somando-se a receita de toda a franquia, chega-se a cifras da ordem de US$ 1,1 bilhão.

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Números como este fizeram de Stallone (ou Sly, como é apelidado entre seus compatriotas) algo mais do que um astro: um mito. Celebrizado nas trilhas da violência, Stallone é a própria representação clássica (conservadora para alguns) do Masculino, do homem heterossexual educado sob a lógica (hoje repudiada) da afirmação do ethos da hombridade. Mas vivemos hoje a era dos difficult men, dos “homens difíceis”, conceito nascido na televisão, com A Família SopranoMad Men e Breaking Bad, numa percepção divinatória do crepúsculo dos machos, no descrédito da figura do pai provedor, do gladiador, do caubói, de Balboa. A sobrevivência cinematográfica de Stallone nos nossos dias simboliza uma transgressão, ao sair na contramão da tendência atual de celebrar o emasculamento, de esvaziar a imagem do “macho ocidental”, de trucidar a ideia de que “um homem tem que fazer o que um homem tem que fazer”, ou seja, a retidão inerente à masculinidade. É sobre ela que fala o livro The Ultimate Stallone Reader – Sylvester Stallone as Star, Icon, Auteur, organizado pelo professor Chris Holmlund, da Universidade do Tennessee, com o apoio de um corpo docente de teóricos das maiores faculdades dos EUA. O livro traz Balboa na capa, também numa forma de celebrar seus 40 anos.

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Obrigatório como reflexão sobre a evolução comportamental dos gêneros, a partir do audiovisual, o livro, publicado pela Wallflower Press, começa com um mapeamento dos bilhões que Stallone rendeu para os estúdios americanos, seja em fenômenos como a franquia Rocky quanto em produções de menor rentabilidade (mas marcadas pela adoração popular) como Falcão, o Campeão dos Campeões. Orçado em US$ 35 milhões, Creed arrecadou US$ 172 milhões na venda de ingressos. Na comparação com os demais astros de ação, Holmlund mostra que, diferentemente de Arnold Schwarzenegger ou Bruce Willis, que apenas atuam, Sly sobressaiu-se em outros terrenos, produzindo, escrevendo e dirigindo. Os professores apontam o fato de que foram raríssimos os atores, em toda a História do Cinema, que conseguiram emplacar DOIS personagens icônicos e míticos, como Stallone conseguiu com Balboa e Rambo.

Mas, das estatísticas, eles passam para um ensaio mais filosófico sobre o fato de Sly ser uma espécie de guardião de uma cultura hoje fossilizada: a cultura dos heróis que se imolavam em autossacrifício em prol do Outro. Stallone é o fóssil de uma era em que os homens não eram medidos pela sua impotência e sim pela vontade de potência e pela força de arriscar. Mesmo envelhecido e abalado por uma doença em Creed, Rocky ainda percebe que a única maneira de preservar para si um lugar no mundo é pela perseverança, pela tentativa, pelo sangue. A História mudou a condição do Homem. Mas o gongo ainda não soou. Balboa mantém seu legado de pé.

Outra amizade

Mitos são símbolos que interferem nas ações de quem os idolatra. Não por acaso, houve também, em torno de Rocky, casos de geopolíticas, como se pode conferir no livro É Fundamental o Cinema na Vida da Gente, organizado pela designer Hannah 23, lançado no dia 10 de novembro, no Instituto Europeu de Design, no Rio, com depoimentos sobre filmes que salvaram vidas. Tem um texto deste que vos tecla lá, para falar, na primeira pessoa do singular, sobre o longa no qual um pugilista de beira de esquina se transformava em ídolo nacional ao desafiar o campeão mundial. Essa história (real), depende que você volte 31 casas (ou anos) até 1987.

Estamos no subúrbio do Rio de Janeiro, Morro do Adeus, no Complexo do Alemão, em Bonsucesso. Naquela época a Polícia – com o apoio das Forças Armadas - instalaram um posto de vigia por lá, em função de suas trocas de tiros com os traficantes locais. A fim de controlar a população, revistava-se a tudo e a todos, inclusive um português já cinquentão àquela época, que andava sempre sujinho de poeira de batatas e de graxa. O nome dele era João dos Reis, egresso de Armamar, em Lamego. Seu João, quase analfabeto, falava com um sotaque carregado e não sabia escrever muito mais do que números e seu próprio nome. A cada subida na ladeira da Cajuípe, com seu falar rústico, ele tomava uma bordoada na cara de um fardado que abusava do Poder. E isso era testemunhado por seu filho de sete anos, trepado no cume de uma poltrona desbotada.

Da janela do Adeus, o guri vislumbrava a agressão como um destino sem volta. Isso até o dia em que viu Rocky, um Lutador na TV. Aquela versão suarenta e suburbana de Cinderela deu ao rapazinho de sete anos um horizonte maior do que o Complexo do Alemão: no cinema, havia redenção. O Tempo passou, seu João morreu (sem numa ter pisado numa sala de exibição), mas o filho dele – no caso, eu – seguiu por outras lutas – algumas melhores, outras piores – mas nunca tirou Rocky do coração. A proximidade desse aniversário de 40 anos da série de Balboa diz mais do que a imortalização midiática de um filme: abre a deixa para uma reflexão sociológica do peso do cinema na formação de todos nós.

Obrigado, Stallone, por ser o meu amigo imaginário há tanto tempo.

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