A crítica mais ostensiva feita a Cidade de Deus (2002) era a suposta descontextualização da favela - vilanizava-se o morro sem mostrar como o Rio de Janeiro à beira-mar contribuía para o tráfico e a violência lá em cima. Pois a primeira coisa que Cidade dos Homens (2007) faz é descer.
O filme abre com a vigília no Morro da Sinuca dos soldados do tráfico. Pleno verão, o chefe Madrugadão (Jonathan Haagensen) decide que vai tomar um banho de mar. Arma-se um esquema para que todo o aparato do "exército" da favela desça com ele. Com o Corcovado ao fundo, Madrugadão mergulha sozinho, como se fosse numa piscina particular.
De forte conotação social e política, a cena prepara o terreno - não se trata mais de uma história do morro, mas de uma história do Rio de Janeiro - para Acerola (Douglas Silva) e Laranjinha (Darlan Cunha).
cidade dos homens
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A partir daí, começa o diálogo com a série de TV. Na produção global, dois arcos se impuseram: a procura de Laranjinha pelo pai e a obrigação de Acerola de ser pai. Sem perder tempo e sem muita sutileza, o roteiro de Elena Soárez logo joga os dois temas na pauta: sentados na areia, Laranjinha diz que quer achar logo qem o botou no mundo, para mudar seu R.G., agora que completou 18 anos, e Acerola, por sua vez, e também perto da maioridade, se mostra inábil para cuidar do filho, que acaba perdido na areia.
Os conflitos inseridos assim, didaticamente, com o pique da TV, podem incomodar quem esperava o tempo mais paulatino e menos esquemático, típico do cinema que não se orienta por relações de causa e efeito. Mas, por outro lado, é uma introdução justa para quem nunca assistiu ao seriado; o reforço dos flashbacks ajuda a reapresentar o histórico dos dois amigos que cresceram juntos na telinha.
A favela como identidade
O grande avanço de Cidades dos Homens em relação à telessérie e ao filme de 2002 é mesmo o tratamento reservado ao morro (e à relação do morro com a cidade e com aqueles que o habitam). Sem entregar muito, adiantemos um ponto do filme: Acerola e Laranjinha são forçados a deixar a Sinuca quando estoura uma guerra por poder. Não há "descontexto" aqui: uma vez fora de seu espaço, os personagens são obrigados a encarar esse mundo hostil que é, enfim, o resto do Rio.
A favela é um campo de batalha - e as cenas de ação, tiroteio e morte estão ali para provar - mas não só. É o lugar de Acerola, Laranjinha, seu familiares, sem o qual eles perdem o referencial. Mais do que no filme de 2002, o morro de Cidade dos Homens se aproxima do conceitos gregos de éthos e topos, o local a que se pertence. Sem a Sinuca, não por acaso, Acerola e Laranjinha voltam-se um contra o outro.
Está aí um conceito que, daqui de baixo, temos dificuldade de entender: a favela não é um quebra-galho, a favela pode ser uma identidade. E se Cidade dos Homens tem a coragem de tirá-la de Laranjinha e Acerola (exílio é, ademais, um tema recorrente no cinema nacional recente) temos a chegada inequívoca e metaforizada dos dois à maioridade. 18 anos, pé no asfalto, bóra pro mundo descobrir-se de novo.