Com olhar conservador, Mulher-Maravilha 1984 devolve super-heróis à tradição

Créditos da imagem: WB/Divulgação

Filmes

Artigo

Com olhar conservador, Mulher-Maravilha 1984 devolve super-heróis à tradição

Não é só a analogia com a eleição de Donald Trump que torna o novo filme político

26.12.2020, às 13H23.
Atualizada em 26.12.2020, ÀS 14H10

Lançado em ano eleitoral, Mulher-Maravilha 1984 já seria um filme notadamente político mesmo se não tivesse escolhido fazer do vilão Maxwell Lord uma caricatura de Donald Trump. A jornada da semideusa Diana em conflito de aceitação com o mundo “real” termina esgarçando mais as diferenças entre um e outro, entre os super-heróis valorosos e os mortais cheios de defeitos - o que do ponto de vista político pode ser entendido como um viés classista conservador.

Por um lado, o filme articula na ponte entre 1984 e 2020 um clima de opressão masculina que dá substância e urgência tanto ao arco da personagem principal quanto de Barbara Minerva - cada uma com seu mecanismo de defesa contra os homens, seja a hiperssexualização e a violência, no caso da Mulher-Leopardo, seja o bloqueio e a introversão, no caso de Diana. Frutos da cultura de cobiça de Wall Street nos anos 1980, os homens entorpecidos do filme não diferem muito dos homens de 2020, incentivados por uma cultura de impunidade. É legítimo, então, que Mulher-Maravilha 1984 adote para si um olhar desesperançado sobre a dinâmica de gêneros; essa escolha é o que espelha as histórias das duas protagonistas. 

Por outro lado, porém, esse recorte se presta no filme a um exercício de metonímia que autoriza o olhar conservador. A partir do momento em que toma a parte (os sonhos de grandeza de pequenos homens vis) pelo todo (humanos são dominados por suas vontades irrefletidas), a diretora Patty Jenkins vira a chave e separa de vez “nós” e “eles” - sendo “nós”, obviamente, as figuras nobres criadas sob os valores atemporais da Antiguidade, e “eles”, tudo aquilo que veio depois. O filme que teoricamente conciliaria Mulher-Maravilha e o mundo moderno acaba devolvendo às narrativas de super-herói seu caráter mais tradicionalista. 

Isso está impresso, ao longo do filme, na forma como a Mulher-Maravilha interage com civis e se coloca no mundo. Já faz sete anos que assistimos ao pornô de destruição de O Homem de Aço mas os filmes da DC continuam expurgando essa culpa, e a título de consciência social e correção política a Mulher-Maravilha agora abdica da violência em respeito aos indefesos. Parece um caminho virtuoso na teoria (especialmente depois do terceiro ato mal recebido do Mulher-Maravilha de 2017) mas na prática se mostra uma solução paternalista que corrobora esse certo senso de superioridade. Aos humanos cabe sair da frente - e manter segredo sobre a existência dos deuses.

Quando é o momento de atribuir a culpa, bem, essa é compartilhada com a massa. Porque afinal o clímax do filme é também o ápice da analogia com a eleição de Donald Trump. Mulher-Maravilha 1984 não se furta a transferir a responsabilidade para o eleitorado. No mundo real, o que fez os americanos votarem em Trump? Foi apenas o ódio e o individualismo ou foi também uma insatisfação sem nome diante de nossos sistemas de representação política, nosso colapso econômico? O filme não precisa responder essa pergunta, porque ao mesmo tempo em que defende a tradição dos super-heróis está também defendendo a ordem e a autoridade: o caos social é sempre um inimigo a ser combatido, e a forma como o filme vilaniza a desobediência civil para fazer seu clímax de ação também consagra o olhar conservador. Não é hora para aventuras na política, ou na vida.

Que uma das imagens de encanto do filme, a armadura da águia dourada, seja uma criação de Alex Ross nos quadrinhos é mais um atestado de posicionamento, mesmo que involuntário. Desenhista conhecido pelo triunfalismo que eleva os super-heróis da DC Comics a um panteão inalcançável, sempre enquadrados de baixo para cima, ele embala com seu traço hiperrealista um imaginário de fantasia que se cruza com os signos políticos da vida real. Com Ross, os super-heróis se tornam mais estátuas, imunes à cacofonia de apelos das vozes no mundo.

Nesse contexto, as imagens de Diana e Steve Trevor voando acima das nuvens - que tentam evocar a pureza de intenções e a inocência de Superman - O Filme - se tornam mais melancólicas. É como se a super-heroína só tivesse paz mesmo no isolamento, apartada das complicações do mundo real. Em seguida vêm as cenas do voo solo, carregadas de emoção porque afinal torcemos por Diana quando ela se emancipa, mas torcemos principalmente por poder acompanhá-la. Longe de tudo, porém, seja entre as nuvens ou numa transmissão via satélite, Mulher-Maravilha é mais deusa do que nunca, e aos mortais resta a lição de moral, essa gente que reage sem pensar.

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.