Após ser afastado de Liga da Justiça, em 2017, por causa de diferenças criativas e uma tragédia familiar, Zack Snyder passou a falar extensivamente de sua visão grandiosa para o filme nas redes sociais. Apoiada por uma intensa campanha dos fãs, essa insistência foi bem-sucedida e culminou em Liga da Justiça de Zack Snyder. Enquanto o longa é, sem dúvidas, um dos lançamentos mais importantes e únicos de 2021, o Snyder Cut também é parte de uma tradição dos cinemas pelas últimas três décadas: a de filmes com cortes do diretor.
É certo que o caso de Liga da Justiça é especial, tanto pela conturbada história, quanto pelo enorme apoio do público. Mas o ato de cineastas reeditarem e relançarem suas obras acontece desde os anos 1990 nas mãos de diretores como Ridley Scott, Francis Ford Coppola e, claro, o próprio Zack Snyder.
Para entender de onde surgem essas versões alternativas, é preciso conhecer algumas das etapas da produção de filmes. Com boa parte das filmagens concluídas, o trabalho de montagem e edição começa, normalmente supervisionado pelo diretor e por produtores, que vão discutindo o ritmo e a escolha dos takes para a obra. Com grandes orçamentos e campanhas colossais de marketing, há certa pressão para que os longas tenham boa divulgação e caiam no gosto dos espectadores. Para ter uma noção do que esperar, e para saber qual é o público-alvo, os estúdios costumam realizar sessões de teste para uma amostra variada do público, como bem explica o diretor David F. Sandberg (Shazam!, Annabelle 2) em seu canal no Youtube.
A partir das reações vindas dessa pesquisa de mercado, os executivos podem ou não exigir alterações no filme. Isso significa tanto afinar a edição, remover cenas ou até mesmo gravar material inédito. Enquanto o diretor tem força nas decisões, é muito comum que os engravatados do estúdio - que são, afinal, quem financia as produções - tenham a palavra final no produto que chegará às telonas. Existem casos como o Esquadrão Suicida, de David Ayer, em que o projeto, descrito como sombrio e violento, foi inteiramente reeditado em cima da resposta do público ao tom divertido e agitado do trailer. Ou, então, disputas históricas, como a de Bong Joon Ho com o infame Harvey Weinstein, que picotou Expresso do Amanhã (2013) ao ponto de ficar irreconhecível da versão imaginada pelo cineasta sul-coreano.
É claro que nem todo feedback de sessões de teste ou sugestões de executivos são necessariamente ruins, mas diretores com estilos fortes e autorais são os que mais sofrem com as alterações. A noção de dar uma segunda chance aos cineastas só surgiu quando, nos anos 1990, os estúdios perceberam que havia dinheiro a ser ganho nessa empreitada.
O Cortador de Andróides
Blade Runner - O Caçador de Andróides é o mais influente clássico do cinema cyberpunk. O filme de Ridley Scott também é o grande responsável por lançar o movimento de cortes do diretor. Ainda que tenham alguns exemplos antes, foi aqui que a noção de revisitar trabalhos estabelecidos se tornou uma tendência.
Pouco antes da estreia em 1982, a Warner Bros. estava com um certo pé atrás pelo projeto: após reações mornas nas sessões de teste, os executivos tinham certeza que a trama era muito complexa para o público entender. Como resultado, cobraram que o cineasta escrevesse uma narração para Rick Deckard (Harrison Ford) explicar e descrever os eventos. Tanto Scott quanto Ford se opuseram, optando por gravar cenas adicionais para manter alguma sutileza. Mas o diretor não teve o privilégio de aprovar a versão final de seu filme, e se viu obrigado a seguir as ordens e ainda ter que incluir um final feliz para sua obra. Dessa forma, o belíssimo mundo futurista de Blade Runner e a icônica trilha sonora de Vangelis tiveram suas estreias ofuscadas por um monólogo condescendente, lido por um Harrison Ford extremamente entediado. O filme teve desempenho medíocre nas bilheterias, e só foi salvo do esquecimento quando ganhou prestígio cult ao ser lançado em VHS.
Alguns anos depois, em 1989, o arquivista Michael Arick estava pesquisando os arquivos da Warner Bros. quando se deparou com a versão de Blade Runner que supostamente assustou o público da sessão de teste. Sem narração alguma, o filme tinha ares mais poéticos e espaço para a trilha, o néon e a melancolia criarem algo único. O estúdio percebeu que havia demanda por essa versão alternativa, e topou exibi-la em diversos festivais e cinemas. Para diferenciar da anterior, batizou de Blade Runner - O Corte do Diretor - mesmo que sem envolvimento algum de Ridley Scott, que só viria a criar seu corte 100% autoral em 2007. Assim, o termo nasceu como uma ferramenta de marketing, mas uma que serve aos interesses dos estúdios e dos cineastas ao mesmo tempo.
A tendência só pegou mesmo por causa do home video. O lançamento em mídia física, seja VHS ou DVDs para compra ou locação, dava a oportunidade dos cineastas colocarem o que não passou nos cinemas, do público ver material adicional de seus filmes favoritos, e também das distribuidoras lucrarem em cima de obras já consagradas. Ao longo dos anos, filmes como Aliens, o Resgate, Cruzada (novamente de Ridley Scott) e toda a trilogia O Senhor dos Anéis, cujas novas versões foram batizadas de “edições estendidas” ou “edições especiais”. Enquanto a nomenclatura varia do gosto de cada diretor, o propósito e a execução são bem parecidos.
É claro que nem sempre a versão do cineasta será a definitiva. É o caso de Apocalypse Now que, desde o seu lançamento em 1979, passou por diversas reformulações por Francis Ford Coppola. As mudanças, que adicionam arcos narrativos inéditos e ultrapassam as três horas de duração, acabam diluindo muito o ritmo e o impacto da narrativa original. Falando ao Omelete sobre o corte final Apocalypse Now Redux (2020), Chas Gerretsen, que foi fotógrafo de set do clássico, comentou o apego de Coppola com o filme: “acho que Francis Ford Coppola é perfeccionista. E Apocalypse Now foi sua obra de arte ‘imperfeita’. Ele continua ajustando, ocasionalmente piorando-a. Mas acredito que finalmente, ao encontrar paz interior, ele a tornou melhor.”
Mas o exemplo mais infame continua sendo as edições de George Lucas na trilogia original de Star Wars. O diretor conquistou o mundo com sua saga espacial, mas rapidamente passou a cortá-la, adicionar material em computação gráfica e conexões com a trilogia dos prequels, além de até mesmo mudar o sentido de algumas cenas. Se Han Solo atirou primeiro é uma discussão que só surgiu graças a uma dessas intervenções desnecessárias de Lucas. Na contramão do Snyder Cut, esse é um caso em que até hoje os fãs pedem para assistir a versão que foi para os cinemas ao invés do corte do diretor.
Com o home video perdendo força para o streaming ao longo da última década, versões do tipo se tornaram um pouco mais raras. Ao mesmo tempo, os diretores agora têm mais espaço para falar publicamente sobre o que ficou de fora de seus filmes - e ainda apontar dedos para os responsáveis. Liga da Justiça de Zack Snyder pode se encaixar em uma longa história de cineastas que conseguiram demonstrar sua visão numa segunda tentativa, e também pode criar um público sedento por obras com menos interferência de engravatados.