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Conta Comigo | Como o pequeno filme se tornou um clássico do cinema

Uma das principais influências da badalada Stranger Things completa 30 anos

22.08.2016, às 11H57.

O sucesso surpresa de 1986 nos Estados Unidos foi um filme de baixo orçamento, sem efeitos especiais, que por pouco não saiu do papel e tinha nos créditos finais uma informação ainda mais surpreendente: baseado em uma história de Stephen King.

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Uma história do rei do terror sem fantasmas ou objetos amaldiçoados. Publicado em 1982 como parte da coletânea Quatro estações, "Outono da Inocência - O Corpo" (The Body – Fall From Inocence) acompanha quatro garotos de doze anos no verão de 1960 na pequena Castle Rock. Alter ego de King e narrador da história, Gordie Lachance é um menino quieto e tímido que vive à sombra do irmão mais velho. Ideal de sucesso da cultura americana, esportista e estudante bem sucedido, Denny era o centro da atenção dos pais, e sua morte meses antes do início da história desarticula uma família já disfuncional. Nascido após anos de tentativas e abortos, Denny havia sido recebido pelos Lachance como uma “dádiva de Deus” a um casal que se considerava estéril. Já o nascimento de Gordie oito anos depois foi uma surpresa desagradável. Acostumado a ser ignorado, Gordie questiona a justiça de estar vivo em lugar do irmão, e pior, considera o comportamento da mãe natural para quem perdeu o “único filho”. Embora parte de uma comunidade pequena onde todos se conhecem, Gordie carece de identidade própria, reduzido a ser o “irmão de Denny” e lamentado por não ser “como Denny”. Quando uma tarefa escolar o obriga a ler Homem Invisível, de Ralph Ellison, Gordie conclui que vive uma situação similar ao personagem do livro. Seja por ser negro ou por não ser Denny, quando ninguém o percebe, você não existe.

Os outros integrantes do grupo são igualmente membros rejeitados da respeitável sociedade de Castle Rock. Medroso numa cultura que preza a coragem, Vern Tessio vive aterrorizado pelo irmão mais velho, que sonha ver levado para um reformatório, única forma de se sentir seguro. Agitado e raivoso,Teddy Duchamp é um garoto míope que usa o cabelo comprido para esconder as orelhas que parecem “pedaços de cera derretida”. Após enfiar o rosto do filho no fogão, o Sr. Duchamp, um veterano do desembarque na Normandia, recebeu a polícia dizendo que havia tropas alemãs na vizinhança, o que garantiu a ele uma internação em um hospital psiquiátrico e a Teddy a fama de filho de maluco. O mais próximo de Gordie, pacificador e líder do grupo, Chris Chambers vive sob o estigma de sua família. Filho de um alcóolatra e irmão de um presidiário, no imaginário local Chris está predestinado ao crime. Numa cena emblemática, o garoto lembra como foi suspenso por um roubo na escola. Seria muito simples estabelecer uma injustiça, mas King vai além. Chris revela a Gordie que de fato cometeu o roubo, mas devolveu o valor a uma professora, que simplesmente embolsou o dinheiro. Prisioneiro da imagem que fazem dele, Chris não tem como acusar a professora e o caso fica por isso mesmo.

Juntos, Gordie, Chris, Vernie e Teddy revelam uma sociedade de adultos incapazes de prover apoio emocional e moral, o que leva os meninos a procurarem nos amigos os laços necessários para amadurecerem. Em meio a pais e irmãos agressores e a uma cidade que os aprisiona em futuros pré-determinados, a casa na árvore onde se encontram é um local seguro e livre. É ali também que os quatro decidem sair para uma aventura, encontrar o corpo de um garoto da cidade vizinha morto pelo trem que cruza a região. Encontrar o corpo fará deles heróis, e portanto, lhes dará uma identidade apartada de pais e irmãos, mas em busca de algo que já deveriam ter, a caminhada que se transforma numa jornada de crescimento.

Para os estúdios de cinema, no entanto, uma história de amadurecimento de quatro garotos de doze anos sem meninas, sem primeiro beijo ou perda da virgindade, um tanto melancólica e sem um adulto sábio como herói salvador não era algo vendável. E assim, depois de muito trabalho para convencer Stephen King a ceder os direitos da história, os roteiristas Bruce A. Evans e Raynold Gideon quase não conseguiram produzir o filme. Rejeitado por vários estúdios, o projeto acabou no Embassy, considerado na época o último recurso antes da produção ser abandonada.

Originalmente, o filme deveria ter sido dirigido por Adrian Lyne, mas o diretor decidiu descansar após terminar 9 ½ Semanas de Amor, e o roteiro foi parar nas mãos de Rob Reiner. Foi o diretor quem decidiu alterar o foco do filme, movendo o centro da história de Chris para Gordie. Mas para transpor a jornada dos garotos para a tela, era essencial escolher um elenco capaz de transmitir as emoções dos personagens, o que só seria possível escolhendo atores com alguma proximidade com os papéis, já que não há como exigir técnica de meninos dessa idade. Já com alguns créditos no currículo, Will Wheaton foi escalado para o papel principal, enquanto o estreante Jerry O´Connell, que só havia feito alguns comerciais, foi escolhido para interpretar Vernie. Veterano da indústria, Corey Feldman foi considerado o único capaz de expressar a raiva de Teddy, o menino que ao mesmo tempo odeia e idolatra o pai enlouquecido pela guerra. Aos 15 anos, River Phoenix ficou com o papel do amargurado Chris Chambers.

Escolhido o elenco, Reiner levou o quarteto para um hotel, onde durante duas semanas aplicou jogos e exercícios de teatro e mais algum tempo trabalhando com os meninos e o roteiro, transformando quatro garotos que não se conheciam em um grupo coeso. Tudo isso para três dias antes do início das filmagens receber a notícia de que a Embassy havia sido vendida para a Columbia, que não tinha interesse em produzir um filme sem grandes estrelas e poucas perspectivas de lucratividade. As filmagens só aconteceram porque Norman Lear, um dos ex-donos do Embassy tirou do bolso o orçamento de 7,5 milhões de dólares. Mas os percalços de Conta Comigo, nome que substituiu O Corpo, ainda não haviam acabado. O filme não tinha um distribuidor. A salvação, dessa vez veio de Guy McElwaine, executivo da Columbia, que após ver o filme em casa decidiu pelo lançamento.

Sem expectativas, Conta Comigo chegou aos cinemas em agosto de 1986, primeiro em poucas salas e a partir do dia 22 em circuito, arrecadando 52 milhões de dólares e uma indicação ao Oscar de melhor roteiro. O filme também impulsionou a carreira dos quatro garotos, estabeleceu River Phoenix como talento em ascensão e Rob Reiner como diretor, que agradeceu batizando sua produtora de Castle Rock. A produção agradou ainda um crítico em particular. Stephen King, o garoto que foi abandonado pelo pai e se tornou escritor, reconheceu o filme como uma das melhores adaptações de sua obra para as telas.

Conta Comigo está disponível no catálogo da Netflix e é uma das principais influências da série Stranger Things - leia mais.

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