Cabe ao mercado exibidor, com suas intempéries e sua falta de tela, provar se Chico – Artista Brasileiro, previsto para estrear em 26 de novembro, será capaz de concretizar as expectativas levantadas ontem após sua exibição na solenidade de abertura do Festival do Rio 2015, num inflado cine Odeon. Por lá, o senso geral foi de que seu diretor, Miguel Faria Jr., concebeu (com a graça e o relevo emotivo peculiar a toda sua obra) um potencial blockbuster documental, capaz de desbancar Vinícius (2005) do posto de não-ficção mais vista no país nos últimos 30 anos.
Ambos os filmes são do mesmo realizador, o que manteria seu nome no posto de documentarista mais rentável do país de 1990 para cá. Porém algo mudou para Faria Jr. depois da projeção do longa-metragem sobre o menestrel por trás de sucessos como "Cálice": a certeza de que o cineasta alcançou a maturidade narrativa. É seu trabalho mais maduro na concisão do discurso, arquitetado sinuosamente entre relato, registro e encenação, sendo este último aspecto nutrido por uma direção de arte aparada a cinzel por Marcos Flaksman (em um de seus trabalhos de maior inspiração).
Ao subir no palco do Odeon, Faria Jr. chamou um único parceiro de trabalho para dividir os holofotes consigo: a montadora Diana Vasconcellos (de sucessos como Se Eu Fosse Você). Justificou ao público que da edição dela nasceu o roteiro que cadenciou o fluxo de rememorações de Chico Buarque. O reconhecimento foi válido. É pela montagem que Chico – Artista Brasileiro se impõe. E se impõe não apenas como filme sedutor, por costurar lembranças saborosas do músico e escritor, mas como algo capaz de transcender a fórmula biográfica vigente no cinema documental musical nacional.
Não é uma cinebio: é um parlatório sobre o material bruto afetivo de 71 anos de vida, no qual Chico é o senhor do que se narra, construindo e reconstruindo a si mesmo como personagem de sua própria história e da História, aquela senhora com “H”, tendo assinado a lírica de um tempo prolífico em suas canções. De cara, com a câmera parnasiana do fotógrafo Lauro Escorel à altura de seu rosto, ele enfrenta os mitos de si mesmo, destronando o mais recorrente deles: “Não sou tímido. Quando pequeno, meus pais me chamavam de Show Boy”.
O Chico que o filme de Faria Jr. não quer para si os arquétipos de estranheza e excentricidade que a mídia deu para ele. O Chico deste filme - que nos agarra pelo tom espirituoso e pela leveza – é consciente de suas virtudes e de suas vaidades, como demonstra a parte na qual fala do porque desistiu de assinar seu primeiro romance, Estorvo, com pseudônimo: “Se ele agradasse, eu ia querer ficar dizendo: ‘Quem escreveu fui eu’”. O mesmo vale para sua dessacralização à Bossa Nova, à qual se refere como um fenômeno de elite: “Ela hoje não teria a mesma repercussão”.
No momento em que o cinema brasileiro, apesar de contabilizar grandes filmes, ainda carece de personagens capazes de transcender a dimensão e a extensão de um longa e se tornar algo maior (mítico) em nosso imaginário, como aconteceu com o Zé Pequeno de Cidade de Deus (2002) e com o Capitão Nascimento na franquia Tropa de Elite (2007 - 2010), Chico – Artista Brasileiro faz um exercício desconcertante de reinvenção de protagonista.
Os vários Chicos conhecidos e amados - o poeta, o ultrarromântico, o letrista politizado, o fã de futebol – estão todos lá, atendendo a todos os gostos, mas estes heterônimos de um nome só estão todos submissos a um mesmo homem, que se sabe artista (dos grandes), mas não se quer exceção. Ele erra letras ao gravar um acorde para a neta; ele atrapalha as próprias piadas ao cair na risada antes de concluir a anedota; ele abraça a solidão como quem se reconforta com a acomodação do tempo; ele fala da ex (Marieta Severo) com o respeito dos que amam para sempre; ele fala com olhos brilhantes de menino do irmão alemão que seu pai concebeu em Berlim nos anos 1920 e a quem ele não conheceu. Enfim... o Chico de Chico – Artista Brasileiro não é metáfora nem fita do Bonfim: é um sujeito de peito aberto ao acaso.
Essa construção é a poética do filme, que ganha estribilhos nos números musicais dirigidos por Faria Jr. como se fossem instâncias de arejamento entre uma memória e outra. Algumas dessas memórias hão de ficar para estudo, como a revisão crítica que o cantor faz de suas músicas de protesto. Mas, da mesma importância, alguns destes musicais hão de se impor pela beleza, como é Ney Matrogrosso cantando Vitrines ou Laila Garin num exercício de rasga-coração cantarolando "Uma Canção Desnaturada". É um repertório não óbvio, aliás, condizente com um longa que esnoba obviedades e celebra a arte de saber viver, de olhos nos olhos com a arte, sem fazer desatenção.
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