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Santiago | Crítica

João Moreira Salles faz um documentário para falar do documentário que nunca fez

24.08.2007, às 20H00.
Atualizada em 11.02.2017, ÀS 17H44

João Moreira Salles dirigiu, entre 1999 e 2004, três dos documentários mais interessantes da safra nacional recente: Notícias de uma Guerra Particular, Nelson Freire e Entreatos. Em 1992, porém, aos 30 anos, João era pouco mais do que o irmão de Walter Salles e o filho do banqueiro e ex-ministro Walther Moreira Salles (1912-2001).

Naquele ano, João tentou fazer um documentário sobre Santiago Badariotti Merlo, mordomo argentino da mansão onde o herdeiro dos Salles cresceu. Santiago o foi por 30 anos. Já não era mais o ilustre empregado quando abriu o seu estreito apartamento para a equipe de filmagem de João em 1992. A mansão na Gávea, em si, já estava vazia; João morou ali até os 20; a família, espalhada. Santiago viria a morrer dois anos depois, deixando para o então aprendiz de documentarista algumas horas de depoimento filmado.

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O filme nunca ficou pronto. E se hoje, década e meia depois, João Moreira Salles volta a ele, não é tanto para honrar a memória do documentado, e sim para analisar a disposição de espírito do documentarista naquela época. Ainda que o mordomo filosofe, cante, dance e encante na tela, Santiago (2007) é um filme sobre João. É a sua expiação.

João explica em todos os detalhes, numa narração em off, como planejava em 1992 apontar a câmera para Santiago e para a mansão, encadear imagens, extrair significados dali. Desconstruir o documentário e desmascarar os seus mecanismos é a terapia do cineasta. Se o João de ontem enquadrava, num plano à la Beleza Americana, um saco plástico bailando no ar, o João de hoje inclui na montagem o momento anterior em que o saco foi calculadamente lançado ao vento para a câmera registrar.

Cenas assim, captadas na mansão vazia, em fotografia em preto-e-branco, são mais impactantes até do que ver Santiago repetindo takes sob comando do "diretor". A câmera passeia vagarosa por jardins cobertos de flores e salões com o chão ainda brilhante. A melancolia é evidente. Vez ou outra, a imagem parece denunciar ali uma certa decadência. Nas entrelinhas dos travellings, além do tratado sobre o tempo e do resgate da memória, há uma culpa burguesa pedindo em silêncio para ser perdoada.

Esse exame sem auto-complacência diz muito não só da disposição do cineasta em expor suas fraquezas, como diz das armadilhas do gênero em si. Documentar é saber observar o mundo que se abre diante dos olhos, e não enquadrar esse mundo a um ponto de vista pré-concebido - parecem duas coisas inconfundíveis, mas, nos tempos atuais, em que panfletos de Michael Moore ganham Oscar de documentário, é urgente repisar essa dissociação.

Nota do Crítico
Bom

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