Como cineasta, o trunfo de Niki Caro sempre foi o seu excelente olho para filmar cenários impressionantes, mesmo em meio a tramas mais íntimas do que expansivas. O oceano infindável de Encantadora de Baleias, as minas de carvão intimidadoras de Terra Fria, a China imperial extraordinariamente colorida de Mulan… Sob a direção de Caro, sempre cuidadosa com o design de produção e a fotografia, essas e outras locações ganharam força expressiva dentro do texto de seus filmes, e criaram experiências cinematográficas que pareciam se estender na nossa direção, ansiosas para serem compreendidas, ao invés de se retraírem em suas próprias emoções.
O equívoco crucial de A Mãe, portanto, é por algum motivo rejeitar essa força de sua diretora. Vide a mansão do traficante de armas vivido por Gael García Bernal, que é cheia de luzes quentes e tem salas invadidas por vegetação, enquanto o próprio personagem surge em um trono cercado por dezenas de velas - mas não é como se o filme ousasse se afastar um pouco para observar isso, transformar essa escolha estética em arma narrativa. De fato, a maioria das cenas de ação e suspense dentro da trama são filmadas com uma inexplicável lente olho de peixe, que desfoca e distorce os cantos da imagem, chamando nossa atenção para o centro de forma sufocante.
Na interpretação mais caridosa, dá para ler tudo isso como uma escolha artística proposital, mas ainda equivocada. Com a ideia de nos concentrar na angústia de seus personagens diante de escolhas impossíveis e de entes queridos em perigo, Caro abre mão não só de mostrar o melhor do seu trabalho, como também de nos inserir no mundo em que essas pessoas vivem. Qual é o ponto de nos fazer olhar para o rosto torturado de Jennifer Lopez enquanto ela protege sua filha de um maléfico Joseph Fiennes se não podemos entender nada que se passa ao redor dela, identificar os detalhes de onde ela vive e por onde passa em sua jornada violenta de realização materna? Ao invés de envolvente, o efeito dessa escolha é alienante.
Um crítico mais cínico diria - talvez com alguma razão - que a Netflix simplesmente não deu a Caro o mesmo dinheiro que a Disney gastou com Mulan. Não é culpa da diretora: hoje em dia, nem mesmo o nome de J.Lo é capaz de chamar muito orçamento para um filme de ação sem laços prévios com alguma franquia. É uma pena, porque havia potencial nessa história sobre uma ex-atiradora de elite que se envolveu com o tráfico de armas após o fim do seu serviço militar, ficou grávida com um de seus comparsas violentos, e decidiu se tornar informante do FBI para proteger a filha.
É claro que, no processo, ela se tornou alvo das facções com quem trabalhava, o que por sua vez a obrigou a abrir mão da guarda da bebê e ir viver em uma cidadezinha isolada no Alaska. Doze anos depois, os criminosos localizam a agora adolescente Zoe (Lucy Paez), e nossa protagonista precisa voltar a ativa para protegê-la. A sinopse cria a expectativa de mais adrenalina do que o filme de fato entrega: o roteiro de Misha Green (Lovecraft Country), Andrea Berloff (Rainhas do Crime) e Peter Craig (Top Gun: Maverick) é desconfortavelmente dividido em dois atos, ao invés de três, e aborda a ação de forma mais objetiva do que espetáculos hollywoodianos da verve John Wick e Resgate.
Aqui, o que mais vemos é a protagonista entrando em locais supostamente seguros de forma curiosamente fácil (o personagem de Bernal, um traficante de armas internacional, por algum motivo tem apenas 12 seguranças em sua mansão), distribuindo tiros certeiros e colocando fogo em tudo no final. A exceção é um confronto físico perto do desfecho, onde a montagem até demasiadamente ágil de David Coulson, parceiro de longa data de Caro, finalmente faz sentido para o que está acontecendo na tela. Em momentos mais focados em diálogo, ou mesmo quando o filme opta por elevar a tensão ao invés de partir para a porrada, os cortes constantes e múltiplos ângulos passam perigosamente perto de criar um efeito Bohemian Rhapsody.
Se a ação não funciona, o que sobra é o pouco insight oferecido pela narrativa. Quando não trafega em chavões não só batidos como perigosos (a cena de tortura que justifica as técnicas violentas da protagonista, o flerte sadomasoquista entre ex-amantes, denotando que a relação dos dois não era nada saudável), A Mãe se limita a fazer paralelos óbvios, desenhar ideias gerais sobre maternidade sem se preocupar em comentar sobre elas ou buscar o cerne da dor e do amor entre mães e filhos. Lopez se esforça para dar especificidade à dureza e ao trauma da personagem principal, mas não há material para apoiá-la nessa busca.
No fim das contas, A Mãe está menos interessado em abrir espaço para os talentos das mulheres que reuniu em sua equipe, e mais interessado em criar uma produção barata que vai ser sucesso no streaming no próximo domingo. Com a barriga cheia do almoço de família, é bem provável que os espectadores caiam no sono no sofá antes da marca de 1h - mas os minutos de streaming seguem contando, não é mesmo?
Ano: 2023
País: EUA
Duração: 115 min
Direção: Niki Caro
Roteiro: Misha Green, Peter Craig, Andrea Berloff
Elenco: Jennifer Lopez, Omari Hardwick, Joseph Fiennes, Edie Falco, Gael García Bernal