Existem filmes que, desde seu anúncio, antes mesmo de se tornarem objetos de apreciação, precisam ser olhados com critérios extras. E aqui não falo sobre abrir exceções para o olhar detalhista a tudo aquilo o que envolve analisar criticamente um filme. É preciso, sim, atentar para sua narrativa, sua montagem, fotografia, atuações, direção e tudo mais que envolve a análise objetiva de uma peça cinematográfica. Mas eu estou falando de filmes cujo objetivo, desde sua criação, é serem mais do que objetos de arte. Filmes escritos para enaltecerem histórias invisibilizadas. Filmes concebidos para elevarem personagens desconhecidos ou subestimados. Filmes produzidos para corrigirem injustiças. Filmes pensados para mudarem realidades sociais.
Você sabe do que eu estou falando, porque acompanhou a saga de Pantera Negra. Um filme de herói e entretenimento indiscutível para agradar multidões em todo o mundo? Definitivamente. Mas um filme escrito para enaltecer a história de um continente e do povo africano. Um filme concebido para elevar personagens que representam guerreiros africanos históricos. Filme produzido para corrigir a injustiça de personagens negros serem tão subaproveitados na história da cultura de heróis, seja em HQs ou produções audiovisuais. E, por fim, fime pensado para emocionar crianças e adultos finalmente se vendo retratados da maneira grandiosa que merecem.
Estou falando de um filme afrocentrado. Que conta a história de um super herói de um país fictício no continente africano. Um filme que, para contar esta história da maneira mais correta e adequada, foi realizado por diretor negro e elenco, obviamente, majoritamente negro. Você entende como estes critérios trazem uma camada de exigência extra — e, portanto, cobrança extra — a uma produção negra? E que isto é o que normalmente acontece com pessoas negras em todas as instâncias?
Não adianta ser um bom filme de uma história negra. É preciso que ele tenha historicidade verossímil e ainda esteja cumprindo uma função social de empregar, representar e enaltecer pessoas negras, fortalecendo esta comunidade. E, claro, que ele seja ótimo.
Este preâmbulo todo é necessário porque agora temos um novo filme que se encaixa exatamente nesta situação. É por todo este preâmbulo, que se justifica a excitação causada quando este filme ainda era só um anúncio: A Mulher Rei, protagonizado por Viola Davis.
E qualquer produção protagonizada por Viola Davis já seria objeto de comoção, porque temos aqui um caso extremamente peculiar: por que só agora a atriz, detentora de prêmios Tony, Emmy e Oscar, teve a oportunidade de explorar um trabalho como protagonista? Some a isto a trama que este filme se dedicou a contar: ele é baseado numa história real, das guerreiras do Reino de Daomé, o exército de Agoji. O Reino de Daomé é o atual Benin, e as suas guerreiras formavam um exército que chegou a ter oito mil mulheres, responsáveis por proteger o rei, o Estado e lutar contra a força colonial. De forma mais específica, o exército francês, em guerras do século XIX. Não se sabe com exatidão quando este exército foi formado, mas elas podem ter vindo do grupo de caçadoras de elefantes ou das mulheres responsáveis pela segurança do palácio.
Outro ponto de atenção do filme é como as diferenças de gênero próprias do Ocidente não eram uma realidade em Daomé: as mulheres ocupavam cargos essenciais, na política e na sociedade em geral. Mas as Agoji eram mulheres cheias de obstáculos, que não podiam casar, fazer sexo, treinavam dia a noite, não constituíam família e precisavam proteger suas companheiras como a si mesmas. Apesar da França ter conquistado Daomé em 1894, após duas guerras em 4 anos, a ferocidade destas guerreiras era impressionante e o Agoji pode ser considerado o único exército exclusivo de mulheres, com registro histórico. Pra saber mais, procure o livro "Amazons of Black Sparta", de Stanley Alpern.
Considerando-se tudo isso, já sabíamos que A Mulher Rei seria mais do que um filme. É um acontecimento social, fundamental principalmente para a comunidade negra, que se insere no mesmo rol de expectativas que aguarda a vinda de Wakanda Forever. Envolve representividade, visibilidade, protagonismo a quem este lugar não é normalmente oferecido e, claro, uma grande produção.
E aqui temos outro filme que definitivamente conseguiu dar check em todos estes critérios, sem esquecer de ser uma produção de ação capaz de nos arrebatar e fazer com que queiramos ir uma, duas vezes, conferir toda a sua grandiosidade no lugar para o qual é feito, o cinema. Um filme com uma história negra que só pode ser contada agora que uma mulher negra, Viola Davis, tem poder o suficiente para fazer isto acontecer (assista ela falando exatamente sobre isto na entrevista que me concedeu por ocasião da sua vinda ao Brasil, e que você pode conferir no canal do Omelete no YouTube).
Dirigido por Gina Prince-Bythewood, responsável por The Old Guard, A Mulher Rei se passa em 1823, e é um épico de ação no qual o amor é parte fundamental, mas sem se desvencilhar um segundo da sua sinceridade e das necessárias verdades históricas, enquanto cumpre sua jornada para ser um sucesso de bilheteria.
O panorama que nos mostra, desde o início, como o filme ruma para o seu mais comercial objetivo, nos é apresentado já nas cenas iniciais: um grupo de homens descansa em um campo perto de uma fogueira. Eles ouvem o farfalhar na grama alta e um bando de pássaros voando com uma brisa. De repente, uma ameaçadora Viola Davis — uma musculosa e ágil mulher que, não esqueçamos, está no auge de seus cinquenta e sete anos, no auge de uma rotina que envolveu meses de práticas de musculação e lutas diárias — e é ela, que interpretando Nanisca, a general Agojie, parece voar da grama, armada com seu facão. Logo, um pelotão inteiro de mulheres aparece atrás dela: com cicatrizes de batalhas, corpos lubrificados por brilho exuberante. São como alucinações mortais, mas assustadoramente palpáveis e assustadoras: as Agojie, definitivamente, são algo a se temer. E a matança que elas produzem sobre os homens (as mulheres na aldeia são deixadas ilesas), faz parte da missão deste conjunto guerreiro para libertar seus parentes presos. Nanisca, no entanto, perde tantas guerreiras no processo que decide treinar um novo lote de recrutas.
Há um aspecto importante a se apontar como, pelo fato de estarmos tão embriagados pela fantasia de batalha dos filmes de herói, valorizamos ainda mais a qualidade de um filme que consegue nos enraizar um tanto mais nas leis da física. Sim, é fantástico ver uma quase voadora Nanisca em direção aos seus oponentes. Porém, mais incrível e cinematograficamente rico é presenciar que, mesmo durante a noite mais escura, somos ancorados tanto no campo de batalha quanto no caos, na desordem, no sangue ressecado, nos corpos seriamente machucados após uma extenuante luta — e que doloroso é imaginar o quão brutal é uma luta no qual lâminas e flechas são as únicas e rascantes armas! A Mulher Rei torna crível a existência de heróinas capazes de lidar com as idiossincrasias de manipular habilidosamente, mas só após muito treinamento, espadas, dardos, cordas giratórias com facas nas pontas — e, eventualmente, unhas compridas e afiadas que penetram e arrancam os olhos dos inimigos.
E toda esta dor e esta extenuante batalha são equilibradas com docilidade desde o momento em que somos apresentados a uma jovem desafiadora, Nawi, interpretada pelo talento de Thuso Mbedu, que é oferecida como presente ao jovem rei de Daomé, Ghezo (John Boyega), por seu pai dominador, frustrado com a recusa obstinada de sua filha em se casar com seus muitos pretendentes, homens velhos e asquerosos. Nawi não chega ao rei, porque a guerreira incrível Izogie (a fenomenal, maravilhosa, brilhante Lashana Lynch), vê a resistência de Nawi como ponto forte para alistá-la no treinamento das Agojie.
Há muito o que se celebrar em A Mulher Rei, mas, mais intensamente, fato é que este é um filme sobre mulheres negras fortes e suas dinâmicas, suas almas, mentes e corpos. Prince-Bythewwod emoldura suas guerreiras, valorizando suas gradações de tons de pele, bem como seu amor e atenção umas com as outras. A direção de fotografia belíssima de Polly Morgan faz poesia ao nos mostrar o vínculo compartilhado por estas guerreiras. Esta é a história de amor deste filme — mais do que a eventual quebra do rígido requisito da Agojie, de não se envolver com homens —, e é esta história de amor que você quer ver: pois ela é feita de comprometimento sentimental tão profundo e dedicado quanto os exaustivos treinamentos. Mulheres cuidando umas das outras em meio a rituais, canções, danças e feituras de cabelos e tratos com as feridas, nos leva para um outro lugar, repleto de humanidade e doçura, muito distante da feiura e da dor de imaginar o fio afiado de uma lâmina cortando peles.
É magistral perceber como a diretora não evita a missão de dar peso emocional a cada um dos seus personagens, algo raro de se ver considerando-se a dinâmica normalmente veloz em excesso de filmes de ação. O rei de John Boyega é imponente, é poderoso com seu séquito de esposas, suas roupas suntuosas e suas decisões nunca questionadas, mas também é sedutor, projeta confiança e convence piamente como alguém a quem estas mulheres amam proteger. Da mesma forma, Amenza, personagem de Sheila Atim tem personalidade contida, consciente de sua posição de segunda em comando, o braço mais confiável da general Nanisca.
Ainda, este é um filme predominantemente focando no exército guerreiro feminino, mas que não se omite do fato de como algumas nações africanas, incluindo Daomé, foram culpadas de participar do tráfico de escravizados com invasores europeus, oferecendo seus próprios compatriotas em troca de bens materiais. O filme não foge desta ligação, não apenas mencionando mas fazendo da questão parte do drama de sua história. Os escrúpulos pessoais de Nanisca, argumentados constantemente ao rei, são a forma de trazer equilíbrio para um fato histórico que obscurece o triunfalismo de um filme que celebra o poder das mulheres.
Existe, no entanto, uma subtrama que traz certa morosidade à história, um romance que surge entre Nawi e Malik, filho de uma mulher de Daomé com um homem português (Jordan Bolger), que surge como esta aparição algo fantasiosa, desejoso de descobrir suas raízes, e que se perde na necessidade de testar a dedicação de Nawi às suas irmãs.
Embora Viola Davis seja a estrela óbvia do filme, em uma performance dolorosa, física e psicologicamente exigente, que combina em totalidade com sua interioridade, Mbedu se afirma como uma estrela também — e a devida conexão entre sua Nawi e Nanisca necessita deste desempenho à altura. A jovem atriz se entrega à história de uma mulher que deseja tanto sua autonomia que nunca recua diante de ninguém. Ela alterna altivez, coragem, com melancolia, de forma sublime. Parece difícil crer que uma garota daquele porte irá se transformar em uma guerreira, mas isto só até o instante em que a vemos guerreando. Há uma cena em que ela chora sobre o corpo de uma guerreira caída e solta um gemido com um impacto que só não toca você se seu coração for feito de vibranium!
A grandiosidade que A Mulher Rei inspira nos remete a épicos estabelecidos, feitos para que seu sentimento se sobreponha ao seu cérebro. Há o esplendor empolgante, o nó na garganta. Mas quando seu cérebro está no comando, você compreende e racionalmente pensa na óbvia lógica de não ceder às forças externas brancas, ao desejo de derrubar sistemas opressores, tendo algo maior pelo qual se mobilizar.
E, cá entre nós: quando a Nanisca de Viola Davis reúne suas guerreiras antes da batalha, bravejando como estas mulheres devem lutar ou morrer, fica muito óbvio para nós como é muito mais digno morrer de pé do que viver de joelhos. E as mulheres são historicamente ensinadas a viver de joelhos. Por isso, parte do que torna este filme tão emocionante é como ele reivindica um capítulo da história que derruba as ideias recebidas sobre gênero. A história é mais complexa do que o filme sugere, isto sabemos. Junto com todos os outros predicados de A Mulher Rei, é isto que faz de um filme mais do que um filme.
Ano: 2022
País: Estados Unidos