Para além do lançamento cronometrado com o 7 de setembro em ano de eleição presidencial, A Viagem de Pedro chega ao circuito comercial brasileiro em um momento oportuno aos seus temas. A ideia de fazer um filme sobre os últimos dias de Dom Pedro I vem de antes, mas sua busca por um público maior acontece em um contexto no qual a reivindicação dos símbolos nacionais se converte em pauta no país, após a instrumentalização (e descaracterização) por movimentos de extrema-direita em anos recentes.
É uma negociação no momento silenciosa, desde a camisa amarela no futebol até a vinda alienígena do coração conservado do próprio Dom Pedro ao país, mas que no filme de Laís Bodanzky se apresenta como peça central da narrativa. Além da premissa inteira construída em torno da viagem marítima feita pelo primeiro imperador do país para reaver o trono de Portugal, a produção também abre com o rei e um jovem Dom Pedro II admirando uma miniatura de Napoleão, completo com o discurso em torno da imobilidade das estátuas e a fabricação artificial dos mitos que retrata.
Essa frontalidade do discurso sugere um ato de resgate simbólico, mas na prática o jogo é menos ousado, prezando pela humanização do personagem histórico em prol do desmantelamento. A premissa de um filme passado quase que inteiro numa embarcação abre espaço gradual ao delírio, brincando com os males que cercavam a saúde de Dom Pedro e os contrastando com o atraso nacional na questão da escravidão, incorporados sobretudo na personagem de Isabél Zuaa que atende sexualmente o rei. Mesmo a figura de Cauã Reymond orbita essa esfera, com o filme incorporando sua imagem de galã pelo máximo do viés de decaimento, completo com a implicação da impotência sexual e o visual desgrenhado.
Trabalha-se então com um drama de câmara fadado ao desgaste, materializado por uma estética mais próxima do barroco pela fotografia de Pedro J. Márquez e a verdadeira cacofonia de línguas que ocupam o barco. Bodanzky acompanha o protagonista como um rei louco e cerca-o de pessoas para atestar essa degradação, alimentado ainda dessa lenta sensação de asfixia que passa longe do heroísmo no qual se retrata a ação de retorno e conquista de Portugal - algo inclusive verbalizado vez ou outra, desmantelando de vez a posição de Dom Pedro como conquistador ou rebelde. Não se assiste a um filme sobre a Independência, mas se compreende a jornada de Dom Pedro como grande tragédia nacional, de um rei preso entre duas nações que não lhe dizem respeito independente do esforço doado.
Há algo de muito conservador nessa perspectiva, e nesse sentido a Bodanzky de A Viagem de Pedro não está muito distante de seus dois longas anteriores, os contemporâneos As Melhores Coisas do Mundo e Como Nossos Pais. A percepção de tragédia aqui implica no desejo de um cenário distinto, claro, mas também de um arrependimento que também prediz a imobilidade, na falta de resolução com as imagens com as quais se lida. Isso se relaciona em algum nível com o olhar conformado dos dilemas de classe média que dominavam os dramas urbanos da diretora, e nesse sentido é possível ver em A Viagem de Pedro uma história de origem para esses sentimentos de cerceamento autoinfligidos, devidamente materializados numa nobreza em fuga das próprias responsabilidades - seja a de Dom Pedro, no abandono do Brasil, ou de seus pais, que escapam de Napoleão no passado.
Essas constatações ajudam a explicar porque o filme da vez, ao contrário do percurso dos personagens, não parece chegar a algum lugar com suas provocações, pois no fundo o questionamento empregado é mais retórico que inquisitivo. Enquanto as dores de Dom Pedro parecem feitas para serem vistas de uma perspectiva distanciada, o tema da escravidão soa como mero capricho, perfeito para detectar os males embrionários da identidade nacional. O mesmo pode ser dito das esposas do imperador, instrumentos para um progressismo do protagonista que é sufocado pela intolerância dos tempos. Que intolerância seria essa, afinal? Presume-se que a discussão não pertença ao filme.
É aí que se percebe o oportunismo comercial do lançamento do filme para agora, pois no fundo essa imobilidade não só é confortável aos procedimentos da narrativa, mas se relaciona um tanto com essa relação atravessada de agora com os símbolos nacionais. Não há dúvidas de que há algum prazer no exercício de se desfazer a imagem de herói de uma figura real nos tempos atuais, mas despir um rei em tese pede por algo além do vislumbre humano, uma nova leitura que dê conta de reposicionar as imagens antes abandonadas à putrefação. Para um filme sobre estátuas, A Viagem de Pedro é um drama dos mais engessados.
Ano: 2022
Direção: Laís Bodanzky
Roteiro: Laís Bodanzky
Elenco: Cauã Reymond