Vladimir Brichta e Digão Ribeiro em Alemão 2

Créditos da imagem: Manequim Filmes/Divulgação

Filmes

Crítica

Alemão 2 usa o cinema de ação para denunciar e condenar a violência no Brasil

Sequência pluraliza e afia discurso anti-militarização com retrato forte do Rio de Janeiro

Omelete
7 min de leitura
01.04.2022, às 18H17.
Atualizada em 06.07.2022, ÀS 12H13

O sol nasce no Complexo do Alemão. Com ele, se levantam também os diversos moradores do bairro que abriga algumas das maiores favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro. Salas reviradas são reorganizadas; sangue ainda fresco é lavado de cômodos, quintais e ruas; crianças voltam a circular e adultos retomam seus trabalhos. Mas nem um desses momentos se passa “como se nada tivesse acontecido”. Há pesar em cada travessa e dor em cada viela, ainda que a vida siga seu rumo cotidiano; ainda que haja espaço para alegria e esperança.

É essa noção trágica de comunidade e resistência — que surge mais forte na dura cena narrada acima — que dá o lastro sobre o qual Alemão 2 sustenta uma das mais agudas narrativas de um favela movie brasileiro. O filme de José Eduardo Belmonte, também responsável pelo original de 2014, olha para seu antecessor com o revisionismo necessário para decupar, reorganizar e aprofundar uma denúncia contundente a um ciclo genocida de violência — fenômeno esse que faz suas maiores vítimas nas periferias, embora encontre sustentação em interesses de parcelas poderosas das elites econômica e política nacionais.

Não é à toa que os créditos iniciais do novo filme exibam imagens documentais de políticos notórios, implicados em esquemas de corrupção, enquadrados como criminosos. Belmonte quer não só recapitular como a celebrada ocupação do Complexo por forças militares, em 2010, abriu espaço para a dominação sanguinolenta das milícias, como também explicitar um posicionamento artístico não tão bem articulado no longa original: o de que criminosos e policiais são ferramentas de uma mesma política de extermínio mirada à população mais pobre do país. Alemão abraçou como prioridade a claustrofobia bélica de clássicos de ação como Assalto à 13ª DP (1976), focando demais em seus protagonistas, policiais predominantemente brancos, e de menos na comunidade majoritariamente preta que emprestou seu nome ao título do filme. Alemão 2 entende que seu discurso social não pode estar confinado a um apoio a uma campanha anti-militarização exibida ao final da história, mas sim presente em cada elemento que leva à tela. E faz isso muito bem.

Os roteiristas Marton Olympio, Thiago Brito e Pedro Perazzo partem de um evento paralelo ao terceiro ato do filme de 2014, em uma abertura sanguínea e pulsante graças à câmera nervosa de Belmonte, para apresentar Alemão 2 como um estudo de personagem: baleado durante a ocupação do morro, o policial Machado (Vladimir Brichta) vive assombrado pelas dores deixadas pelo ferimento e pela escolha de não matar o criminoso Soldado (Digão Ribeiro), que ainda assim atirou contra ele. Anos depois, o agora membro das Operações Especiais é ordenado por sua antiga parceira, a delegada Amanda (Aline Borges), a liderar um grupo disfarçado para prender silenciosamente seu velho algoz. Apresenta-se, portanto, um dilema moral para Machado: vingar-se de Soldado e matá-lo, como ele questiona se deveria ter sido feito anteriormente, ou levá-lo à Justiça, como dita o rito da Lei. Mas isso logo se revela ser só um fio em uma malha narrativa extensa.

Olympio, Brito e Perazzo tecem as relações dos personagens que apresentam de forma simbiótica, reforçando a ideia de que todos estão presos a um maquinário projetado para promover a desumanização. Amanda, por exemplo, acredita ter provocado o disparo de Soldado que atingiu Machado, vendo na possibilidade de redenção do antigo parceiro a sua própria — e tomando atitudes precipitadas e perigosas a partir dessa pulsão pessoal. É um caminho que parte do reforço à tensão entre os papéis de Brichta e Ribeiro para o enriquecimento psicológico da própria personagem, e que se repete conforme Alemão 2 introduz mais nomes à trama. Acompanhando Machado morro acima, Freitas (Leandra Leal) é uma jovem policial recém-incorporada às Operações Especiais, incerta dos horrores que a aguardam em conflitos diretos com a criminalidade; Ciro (Gabriel Leone), por outro lado, é um totem da desumanização promovida de forma corporativa pela militarização das forças policiais: um cínico fascista que acredita no excesso de “mimimi” daqueles que não defendem que “bandido bom é bandido morto”, mas que sangra pelo nariz de tanto medo de levar bala.

Leandra Leal e Gabriel Leone em Alemão 2
Manequim Filmes/Divulgação

Juntos, esses personagens ilustram os contrapontos do dilema de Machado, mas onde Alemão 2 supera de vez o filme original é em não tornar-se míope para a problemática que vai além da polícia, investindo pesado na pluralização da narrativa. Com ares de protagonista, o papel vivido por Brichta é em verdade apenas o elemento introdutório no estudo do verdadeiro personagem-central do filme: o Complexo do Alemão, feito vivo por meio de quatro talentosos atores pretos, em performances delicadas e poderosas. São eles Mariana Nunes, a única remanescente do longa de 2014, que novamente empresta seu nome à personagem de uma mãe cuja vida foi tocada pela violência; Zezé Motta, como uma veterana profissional da saúde, antiga e respeitada moradora da comunidade, que rouba a cena incorporando e vociferando críticas ao racismo estrutural brasileiro; Danilo Ferreira, como o policial militar Bento, um morador do morro que ingressou na corporação por ainda acreditar na mudança por meio do sistema; e o próprio Digão Ribeiro, que, apresentado como um antagonista clichê, redimensiona o personagem e o transforma em uma figura humana, trágica e catalisadora de empatia.

Soldado é o representante da criminalidade do morro, mas passa a maior parte do tempo de tela inserido no núcleo policial de Alemão 2. É por meio desse deslocamento e dos conflitos que ele invoca que o público é convidado a desvendar a humanidade por trás do vilão, descobrindo suas ambições, seus medos e seus amores. Sem deixar de condenar o envolvimento com o tráfico de drogas, o filme usa esse retrato para escancarar a proximidade dicotômica entre o caminho da lei e o caminho do crime, quando vistos pela realidade nas periferias: uma vida com liberdades de escolha cerceadas por uma sociedade que vê como persona non grata quem é pobre e preto. Em uma das grandes cenas do filme, Soldado explica como seu “nome de guerra” não veio por causa da atuação à margem da lei, mas sim porque ele sonhava em servir o Exército para conseguir uma melhor condição de vida. Aos 26 anos de idade, Ribeiro entrega um dos mais belos trabalhos de uma carreira ascendente pontuada por títulos como Ursinho (2018) e Dom (2021).

Mariana Nunes em Alemão 2
Manequim Filmes/Divulgação

Todo esse carinho e cuidado dado ao conteúdo se reflete também no trato à forma: Alemão 2 é um filme realmente bonito, com uma produção que não faz feio frente a Hollywood, assinada por Rodrigo Teixeira e Marília Garske. A fotografia de Fabricio Tadeu e Leo Vasconcellos cumpre papel fundamental na imersão e na boa condução que Belmonte dá às cenas ambiciosas de ação, bem como aos respiros contemplativos que dimensionam o impacto da violência. Bebendo de fortes influências estrangeiras em faroestes como Galante e Sanguinário (1957) e pipocões como Protegendo o Inimigo (2012), o cineasta subverte parte dessa gramática ao usá-la em ataque à fetichização da violência, tão comum lá fora. Assim, uma brutal cena de tortura é fotografada quase que toda em contraluz; é raro que a câmera permaneça focada em corpos e ferimentos sem que tenha como objetivo provocar comoção emocional; e quando personagens são mortos, tudo acontece repentinamente e sem cerimônias, de forma a desnortear o público tal qual quando se recebe a notícia do falecimento inesperado de um conhecido.

É como se Alemão 2 fosse um favela movie revoltado consigo mesmo, inquieto na condição de ser mais uma peça do cinema nacional que precisa abordar essa problemática porque, bem, ela segue sendo urgente à identidade nacional em pleno 2022 (o filme, produzido em 2019, se passa em 2018, mas só chega agora às telas por conta da pandemia). Sua revolta, entretanto, é poética. Dos momentos em que conseguimos pescar uma fofoquinha entre vizinhas da comunidade, aos breves respiros onde acompanhamos o cabresto político sustentado por programas religiosos nas TVs do Complexo, ou quando policiais esquecem um tiroteio para ver em fogos de artifício a beleza que existe sob tanta dor e violência sem sentido, até o apoio e a compreensão que só duas mulheres pretas, brasileiras e em luto podem partilhar; Belmonte e equipe clamam por uma reflexão humanizada sobre os rumos da Segurança Pública do Brasil usando o melhor que o cinema tem a oferecer. E por meio de trama que une entretenimento, uma mensagem bem pensada e muita representatividade de forma impecável — e nunca previsível.

Nota do Crítico
Excelente!
Alemão 2
Alemão 2
Alemão 2
Alemão 2

Ano: 2019

País: Brasil

Classificação: 16 anos

Duração: 109 min

Direção: José Eduardo Belmonte

Roteiro: Marton Olympio

Elenco: Leandra Leal, Digão Ribeiro, Zezé Motta, Vladimir Brichta, Mariana Nunes

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