Se a arte da vida pública, como escreveu Bauman a respeito do que chamou de modernidade líquida, hoje se reduziu à exposição e à confissão pública de questões e sentimentos privados, então talvez o cinema da diretora francesa Justine Triet sirva bem para atestar os conceitos do filósofo. Há anos Triet faz filmes que problematizam as fronteiras “líquidas” entre público e privado, e o premiado Anatomia de uma Queda é o mais recente deles.
Na trama, o espectador é convidado a devassar a queda do título, ocorrida num chalé de inverno na região dos Alpes franceses. Numa tarde, o marido francês da escritora alemã Sandra (Sandra Hüller) cai de uma janela alta; a esposa e o filho o encontram já morto na neve. Transcorre um processo de tribunal para decidir se o fato - um suicídio, um homicídio, um acidente? - incrimina Sandra, e ao longo de duas horas e meia descobrimos publicamente os pormenores privados desse casamento, sejam eles pertinentes à investigação ou não.
Logo no primeiro plano, quando Sandra começa a ser entrevistada no chalé por uma jovem jornalista, o que engatilha o ciúme do marido, a escritora pergunta, voltada para a câmera: “O que você quer saber?”. Obviamente Triet escolhe esse ângulo para direcionar a pergunta para o próprio público; chamar a nossa atenção para a responsabilidade do nosso olhar (e a responsabilidade do próprio cinema, como mediador) é o primeiro passo para problematizar a forma fronteiriça como a comunicação da individualidade se estabelece nos dias de hoje.
Quando perdemos o norte dos papéis que as instituições, o Estado e a mídia - as autoridades estabelecidas na modernidade do passado, “sólida” - executam socialmente, resta aos pequenos palcos encenar essa solidez. O tribunal é um deles. Desde sempre um lugar por excelência das narrativas que estão em busca de entender como a modernidade se apresenta em torno dos seus anseios de organização, o tribunal é hoje, pelo menos nos filmes de Justine Triet, um palco da pantomima. Isso é evidente quando ela realiza um filme de tribunal como Na Cama com Victoria (2016), porque trata-se de uma comédia, mas a comicidade do processo kafkiano persiste em Anatomia de uma Queda (basta pegar o diálogo absurdo sobre a canção de 50 Cent para exemplificar).
Nesse contexto em que precisamos assumir que a farsa pode ser um dado consumado, então, saber se Sandra matou ou não o marido se torna um detalhe desimportante, diante de todo o teatro midiático de validação da ordem das coisas. Da mesma forma, é desimportante saber, em Segredos de um Escândalo, se a condenada na Justiça vivida por Julianne Moore carregava ou não traumas de infância. A experiência humana, nas suas complexidades, se anula em nome da encenação do interesse público.
Triet enxerga a desumanização desse processo e seu filme se presta, então, a nos castigar pela parte desse teatro que cabe ao espectador, que é principalmente a morbidez do sensacionalismo. Em tempos de true crime, Anatomia de uma Queda atende de forma muito satisfatória essa morbidez; há a variedade de registros filmados (os áudios do casal brigando, o vídeo granulado da polícia reencenando os momentos após a queda no chalé) e há sempre os pontos de vista variados no tribunal, dos advogados, das testemunhas, dos familiares. Triet muda de uma perspectiva para a outra com precisão e disposição, mas é menos para iluminar o caso e “buscar a verdade”, e mais para enredar o espectador naquilo que é essencialmente um jogo de controle narrativo. Quando o tempo dos planos se alonga, é menos para sondar essa verdade e mais para que a imagem se fixe ao espectador como um incômodo espelho.
Esse jogo opera em função do acúmulo e da exaustão e, nesse sentido, Anatomia de uma Queda se aproxima do que Martin Scorsese tentou fazer com as três horas de Assassinos da Lua das Flores. Ainda que sujeite o espectador à devassa, Triet nunca perde de vista a humanidade de sua protagonista (a dificuldade no idioma francês é o principal sinal de que Sandra “recusa” a máquina da encenação), e de qualquer forma temos aqui uma cineasta que obviamente entende as armadilhas dessa busca quimérica pela “verdade”. Não se trata disso; primeiro porque convém a uma cineasta no domínio do seu ofício entender a natureza ilusória da imagem filmada, segundo porque o conceito de verdade não se aplica tanto à modernidade líquida, na medida em que tudo o que é moderno está permanentemente em transformação.
A Europa talvez seja o epicentro dessa problemática da modernidade porque toda a ideia do Velho Continente como berço e ápice dessa era é colocada em xeque no “fim da História”. Justine Triet primeiro se apresentou como analista desse ponto de inflexão, em documentários e ficções sobre política e juventude, e as questões geracionais, principalmente a maternidade, se assentaram em seu cinema como uma terminação nervosa que recebe e reage a todos esses estímulos. De trabalhos pontuais sobre a realidade francesa na era Macron, a cineasta parte para o cinema ficcional de gênero por entender que a fabulação - incluindo aí seus esgarçamentos, especialmente com a sátira - talvez seja hoje uma ferramenta melhor para espelhar e entender uma realidade que, do ponto de vista jornalístico e documental, se apresenta para nós difusa e desarticulada.
Há um método nisso, o que fica claro na reiteração de temas como o tribunal, a maternidade, os crimes cuja solução nos escapa, que Triet já havia elaborado em Na Cama com Victoria. Na comparação, Anatomia de uma Queda fica mais rijo porque aquele segundo longa-metragem de Triet era muito mais sagaz (e francamente prazeroso) ao desdobrar sua discussão do público-privado para questões de cidadania, individualismo, autoimagem e a rotina da espetacularização. O que temos agora é uma Justine Triet que conquistou, com razão, um lugar entre os debatedores dos “temas sérios”. Seu longa vencedor da Palma de Ouro faz jus a essa conquista, advoga-se inclusive o direito de ser solene sobre esses temas, e opera muito habilmente na fronteira (se é que esta existe) entre o filme franco de gênero, o suspense de tribunal, e o drama de prestígio. O efeito colateral disso é que a tribuna agora parece um pouco mais distante daqui onde estamos, no mundano da plateia.
Ano: 2023
País: França
Classificação: 14 anos
Duração: 152 min
Direção: Justine Triet
Roteiro: Arthur Harari, Justine Triet
Elenco: Sandra Hüller