Valentina Herszage está vivendo um ano absurdo no cinema. Entre Vidro Fumê, O Mensageiro, Ainda Estou Aqui e este As Polacas, a atriz de 26 anos não só colocou quatro filmes no circuito comercial brasileiro em 12 meses (um feito por si só, diante das dificuldades da indústria nacional), como demonstrou fartamente uma força de manobra dramática considerável. Suas personagens em cada um desses longas enfrentam provações extremas, muitas vezes ficando cara a cara com violências emblemáticas do período histórico em que vivem, e Herszage invariavelmente se mostra capaz de expressar as marcas deixadas por essa violência e resguardar, em algum lugar no fundo dos olhos, a ferocidade de quem está sempre desenhando uma vida além delas.
Tê-la no centro de sua trama “inspirada em uma história real de luta pela liberdade”, como alardeia o pôster, é o maior trunfo de As Polacas. Aqui, Herszage é Rebeca, imigrante polonesa que chega ao Brasil no início do século XX, fugindo dos horrores da Primeira Guerra. Desembarcando aqui, no entanto, ela descobre que o marido (que tinha vindo anos antes) está morto e que, para conseguir cuidar do filho pequeno, vai ter que aceitar a oferta de emprego de Tzvi (Caco Ciocler), dono de um prostíbulo inteiramente operado por mulheres judias que chegaram da Europa em situação similar à da protagonista. O cafetão, é claro, vai se mostrando aos poucos dominador e violento, inclusive escondendo o filho de Rebeca para impedi-la de fugir do estabelecimento.
Desenrola-se assim, no filme dirigido por João Jardim (Pro Dia Nascer Feliz), uma história de abuso psicológico e sexual que, por mais relevante que seja como fato histórico, é também bastante familiar dentro das imagens consagradas do cinema. O roteiro de As Polacas - assinado a oito mãos por Jaqueline Vargas (Em Terapia), Teresa Frota (Me Chama de Bruna), Flávio Araújo (Sob Pressão) e George Moura (Linha de Passe) - conduz esse arco de aprisionamento, submissão institucional, esgotamento de opções e libertação violenta com gabarito melodramático, ao que o diretor Jardim responde com uma linguagem visual polidamente folhetinesca, honesta até demais.
Especialmente nos momentos de maior impacto, na hora de consumar o abuso que vem cercando a protagonista por todos os lados, a opção de As Polacas por um confronto direto dessas imagens e dessa história parece mais estratégia de choque do que necessidade de denúncia. Até porque a missão declarada do filme como resgate histórico está ao redor desses momentos de violência, e não neles - nos seus letreiros finais, As Polacas faz ode ao trabalho da Sociedade da Verdade, uma organização de imigrantes polonesas que lutou por direitos e preservou a história das mulheres que vemos durante o filme. Um empreendimento fascinante, fundamental, e do qual se ouve pouco falar… inclusive no filme que precede esse reconhecimento nos créditos.
Por fim, até a performance de Valentina Herszage reflete esse curioso desencontro do filme com o que ele tem de novo e interessante a dizer ou mostrar. Os seus melhores momentos não estão ao expressar o sofrimento óbvio da violência, mas nas maneiras com que contorce seu corpo para fugir dela conforme as paredes se fecham ao seu redor. Dignidades minadas, rejeições e escapes cada vez mais impossíveis, desnudações indesejadas - a desconstrução paulatina de uma mulher cujas barreiras desmoronam muito antes do seu corpo ser violado. Singularmente focado no último passo dessa desconstrução, o filme ao redor de Herszage não faz jus ao que ela se mostra capaz de entregar.
Ano: 2023
País: Brasil
Duração: 125 min
Direção: João Jardim
Roteiro: Teresa Frota, Jaqueline Vargas, George Moura, Flávio Araújo
Elenco: Valentina Herszage, Otávio Muller, Caco Ciocler