No início do Festival de Cannes 2024, o filme francês Diamant Brut abriu a competição pela Palma de Ouro representando o cinema da miséria em sua encarnação mais moralmente duvidosa, olhando de cima para baixo para as classes menos favorecidas da Europa, esvaziando sua cultura e sua subjetividade pelo bem de… de quê mesmo, de um filme que vai ser aplaudido por elites e intelectuais em um evento bilionário? É um conceito envenenado, desagradável, da cultura cinematográfica, mas felizmente Andrea Arnold trouxe a Cannes o antídoto para este veneno, e ele atende pelo nome de Bird.
Acima de tudo, não há fingimento em Bird. Arnold abraça cacoetes do “cinema de arte” , como o fascínio por formatos analógicos e a estetização barroca da pobreza, com uma dedicação ao pessoal e ao particular que desarma. Se o diretor de fotografia Robbie Ryan (que também assina Tipos de Gentileza em Cannes este ano) escolhe incluir ruídos à la VHS em sua imagem, Arnold contrapõe essae pendor ao rústico e ao antigo com a inclusão de vídeos gravados no celular da protagonista Bailey (Nykiya Adams), fundando seu filme na multiplicidade de pontos de vista, e embaralhando formatos para fazer dele uma narrativa muito mais poderosa em termos de alteridade.
Na trama de Bird, a jovem Bailey entra em crise quando seu pai, Bug (Barry Keoghan), anuncia que vai casar com a nova namorada. Ao mesmo tempo, ela conhece o misterioso Bird (Franz Rogowski), um estrangeiro que está a procura da família perdida há anos. Uma terceira subtrama toca na violência doméstica e no vigilantismo, com o roteiro de Arnold trabalhando de forma bem segura para amarrar suas três linhas em uma exploração do conceito de comunidade e como ele se relaciona com a construção de uma identidade na adolescência.
A jornada de Bailey, enfim, não depende da violência e da sujeira do mundo ao seu redor - ela acontece apesar dele, nos respiros de tudo o que acontece por causa dele. E, igualmente importante: ela é quem ela é em função de quem a cerca, e não do quê a cerca. Na identificação inicialmente relutante da protagonista com o personagem Bird, por exemplo, há uma sugestão de fraternidade queer formativa, arrematada no terceiro ato do filme com uma aproximação da fantasia alegórica - que, aliás Arnold insere no universo bem realista do filme sem muitos floreios, consciente de que o público aceita um choque tonal quando ele tiver ressonância com o universo emocional que o longa constrói.
No fundo, talvez todos os triunfos de Bird tenham a ver com esse construir tão cuidadoso de subjetividades. Nos jovens atores que dirige para entregar performances carismáticas, mas pulsantemente internalizadas em suas emoções mais significativas; na dosagem criteriosa que faz da inclusão de Keoghan e Rogowski, ambos excelentes em suas próprias idiossincrasias, para que eles não distraiam o espectador da concretude plenamente possível daquela história; na escolha da música, que segue sua própria jornada dentro do filme, a caminho de uma abertura emocional, de um diálogo mais direto e relacionável com o público e entre os personagens… nas mãos de Arnold, tudo é calculado e tudo parece absolutamente natural.
E eu gosto de pensar que isso acontece por causa da sinceridade de cada escolha. Não é que o olhar de Bird não seja treinado, em termos de cinema, mas que o seu impulso é o de destrinchar e entender o outro, e também o de celebrá-lo como genuíno - não mais genuíno que o eu, que não é totalmente removido de nenhuma obra de arte, mas igual a ele de todas as formas que os humanos se relacionam entre si. Encontrar esse cinema de ternura tão viva em um lugar por vezes tão hostil a ele quanto Cannes, engolido como toda indústria pela busca insincera de uma aprovação “vendável”, é um grande alívio e um grande prazer.
Ano: 2024
País: Reino Unido/EUA/França/Alemanha
Duração: 119 min
Direção: Andrea Arnold
Roteiro: Andrea Arnold
Elenco: Barry Keoghan, Franz Rogowski, Nykiya Adams