Sacrifício ritual, Blonde faz da vida de Marilyn Monroe um filme de horror

Créditos da imagem: Netflix/Divulgação

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Crítica

Sacrifício ritual, Blonde faz da vida de Marilyn Monroe um filme de horror

Andrew Dominik tenta fazer uma crônica biográfica de prestígio usando os códigos do terror

Omelete
4 min de leitura
04.10.2022, às 16H53.

Encarar Blonde como um exercício de fidelidade histórica pode ser bastante frustrante, e não apenas porque cinebiografias sempre vão ser recortes enviesados a serviço de uma narrativa de fabulação. O filme de Andrew Dominik baseado no livro de 700 páginas de Joyce Carol Oates está menos interessado na história “real” de Norma Jeane Mortenson do que em usar a figura de Marilyn Monroe como uma Scream Queen de luxo, num filme de horror colorizado com o verniz de respeitabilidade.

A esse propósito, Ana de Armas basicamente oferece os seus olhos grandes e expressivos, capazes de transmitir o impacto das provações a que o filme sujeita o corpo e a dignidade da atriz. Acompanhamos Marilyn da infância à morte, em segmentos de vida selecionados para compor um mosaico dos abusos sofridos pela mulher mais objetificada da história de Hollywood. De Joe DiMaggio a Billy Wilder (figuras absolutamente distintas na vida real), os homens que atravessam a vida de Marilyn no filme são todos unificados sob o estigma do abusador.

Ou seja, para criticar o machismo de Hollywood, Dominik faz de Marilyn uma virgem em sacrifício num grande ritual promovido comunitariamente. O tribalismo, a preocupação com questões de linhagem e de hereditariedade são três elementos recorrentes no chamado horror folclórico que Blonde pega para si. Talvez o incêndio florestal em Los Angeles que abre o filme já fosse o primeiro sinal, uma vez que a pira cerimonial e o rito do fogo também constituam elementos visuais de impacto no folk horror.

Soluções visuais como as bocas deformadas dos homens gritando no tapete vermelho e as pipocadas de flash das câmeras -  recursos de jumpscare por excelência - caem na conta dos delírios de Marilyn, protagonista de perspectiva pouco confiável. Dominik nunca mistura essa perspectiva da mulher de saúde mental abalada com a perspectiva objetiva do espectador, distanciada com segurança pelo diretor como parte importante do sacrifício da virgem (do qual afinal compartilhamos como testemunhas). Em outras palavras, do terror, Blonde só não se permite o “mau gosto” de misturar as coisas. Mesmo o incêndio parece só um artifício de luz.

Isso tira qualquer mérito que o filme poderia ter - depois de se organizar como exercício formal de horror - enquanto denunciador de nosso voyeurismo. É possível que a adaptação do livro de Carol Oates saísse diametralmente oposta na mão de cineastas sempre conscientes do voyeurismo, como Brian De Palma ou Roman Polanski. Com Dominik, é possível até traçar paralelos a O Bebê de Rosemary (1968) de Polanski, não fosse o feto em computação gráfica de Blonde, perfeitamente rosáceo, tão próximo da coisinha imaculada que era o Star Child de 2001 (1968) e tão longe de um rebento concebido em pecado. 

A noção do pecado - que poderia trazer de fato o espectador para dentro da discussão moral que Blonde equivocadamente julga articular bem - só surge no filme na forma do sermão. Dominik filma Ana de Armas em plongée não apenas para denotar que sua Marilyn vivia de joelhos, mas principalmente para sujeitá-la a um castigo que ela divide com seus agressores. Dos textos declamados como reza, passando pelas vozes angelicais de bebês e crianças, até a luz alva absoluta que banha vários dos planos fotografados em preto e branco, tudo em Blonde está sob escrutínio divino.     

Se Blonde se pretende um filme de prestigio, ainda que joque com códigos baratos do horror, essa operação só pode se consumar mesmo a partir do lavar-de-mãos que é o pedantismo carola. Sob esse olhar, inclusive, e para surpresa de poucos, não há aqui espaço nenhum para a arte e suas subversões. Quando equivale os monólogos de Marilyn a uma única voz delirante - seja o monólogo artístico num teste de elenco, seja o monólogo interior dito na loucura em voz alta - Dominik interdita qualquer possibilidade que a arte poderia ter como meio de redenção. Ao mesmo tempo, o filme Blonde é “artístico” o tempo todo, com suas constantes mudanças de cor e janela de projeção, então só resta assumir que Dominik quer pra si a autoridade de decidir o que é arte e o que não é.

A estratégia lírica da narração em off é uma das peças desse embelezamento. Esse recurso funcionava bem no segundo e melhor filme de Dominik, O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2007), porque aquele era um filme que aspirava ao folclórico e ao mítico, com seu texto todo em forma de obituário. Mesmo os documentários que Dominik dirigiu com Nick Cave não fogem ao tom de funeral. Em Blonde a voz em off se propõe elegiática, mas só adiciona ranço a um filme que se sai como um mau obituário, resumindo eventos históricos grosseiramente e tratando Marilyn como um objeto branco, falante e fantasmagórico, à espera do abate.

Nota do Crítico
Ruim
Blonde
Blonde

Ano: 2022

País: EUA

Classificação: 18 anos

Duração: 166 min

Direção: Andrew Dominik

Roteiro: Andrew Dominik

Elenco: Bobby Cannavale, Xavier Samuel, Ana de Armas, Adrien Brody, Julianne Nicholson

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