Cena de Código Preto (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena de Código Preto (Reprodução)

Filmes

Crítica

Código Preto ganha pontos pela maturidade, mas não supera o descartável

Soderbergh se apoia na eloquência dos atores para justificar um mundo raso

Omelete
4 min de leitura
13.03.2025, às 08H46.

Não vai faltar gente falando de Código Preto nos termos de um retorno dos filmes de espiões adultos – e, olha só, originais! – que um dia já foram o arroz-com-feijão do cinema britânico. Ainda que tenha dois estadunidenses no comando, o diretor Steven Soderbergh e o roteirista David Koepp, o longa tem mesmo algo do DNA das histórias de serviço secreto do inglês John le Carré. Conhecido por livros frequentemente adaptados para o cinema e a TV, como A Garota do Tambor, O Espião que Sabia Demais, O Gerente da Noite e tantos outros, o ex-espião le Carré construía suas tramas a partir de relacionamentos maduros, e se interessava especialmente pela forma como esse mundo de segredos e traições influenciava os afetos e, por que não, o libido de seus personagens.

Em Código Preto, Soderbergh e Koepp se concentram similarmente no entrelaço entre o pessoal e o profissional dentro do mundo da contrainteligência, e nas formas que os personagens encontram de viver no meio dessa bagunça. Os espiões George Woodhouse (Michael Fassbender) e Kathryn St. Jean (Cate Blanchett) são mestres nesse ato de corda bamba – casados há quase uma década, eles são singularmente devotos um ao outro, mas também se vigiam mutuamente. Quando um traidor dentro do serviço secreto britânico rouba um artefato poderoso que pode causar uma crise internacional, os dois são acionados para descobrir quais de seus colegas está por traz do ato ilegal… mas é claro que as coisas ficam muito mais complicadas do que isso, muito rápido.

O roteiro de Koepp, conhecido em Hollywood por originar grandes franquias como Jurassic Park e Missão: Impossível, investe pesado na tensão dos embates verbais entre os personagens, e em criar para eles neuroses apropriadamente dramáticas. Não só George e Kathryn são opostos que se atraem - ele obsessivamente metódico e organizado, ela caótica e dada a projeções grosseiras de poder -, mas os alvos de sua investigação estão emaranhados em teias de infidelidade conjugal, conflitos de fé e profissão, dependência química, e por aí vai. Um tema persistente do texto são as mentiras que contamos para aqueles com quem nos relacionamos afetivamente, e quando elas ultrapassam a linha entre a enganação útil e a canalhice.

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Clareza não falta a Código Preto para desenhar essa linha, mas Koepp também trata essas relações com uma leviandade que espelha a de seus personagens. O resultado é que o espectador fica à deriva por uma parte considerável das 1h33 do filme, procurando uma ideia de substância para se agarrar, uma conexão genuína que nos guie pelas trocas afiadas entre os personagens. Em uma cena lá pelo segundo ato, Kathryn e a psicóloga Zoe (Naomie Harris) trocam farpas no consultório da doutora, cavando discretamente até o núcleo das neuroses uma da outra, até que chegam a um diálogo essencial, atirado para ambos os lados: “Essa é a primeira coisa interessante que você disse hoje”. Nenhuma das duas está mentindo, e o espectador fica se perguntando por que teve que ouvir tudo aquilo até chegar no que importava.

Se Koepp vai criando a sua trama assim, com uma pretensão de profundidade que não se vê concretizada nas trocas entre os personagens, Soderbergh segue a deixa ao fazer o que ele faz de melhor: filmar um mundo de superfície pela superfície, brincando com convenções de gênero e com os formatos digitais que podem deturpá-las de forma cuidadosamente localizada entre a elegância e vulgaridade. Código Preto se passa todo em corredores e apartamentos impecavelmente ascéticos, por onde passeiam personagens impecavelmente vestidos, que escondem por baixo de seus sobretudos e golas rolê chiquérrimos uma brutalidade e uma frieza extraordinárias. O cineasta trata essas transgressões de forma seca, deixando as faces mais feias de seus espiões de classe média-alta aparecerem à plena luz em um filme sem muitos rodeios estéticos.

É também a eloquência do elenco que faz parte desse conflito funcionar, claro. O olhar penetrante de Cate Blanchett, que não tira o sorriso presunçoso da cara por mais do que alguns segundos; a inquietude crônica de Tom Burke, como um espião obviamente governado por impulsos nada racionais; a hesitação crua de Marisa Abela, que quase serve como os olhos do público enquanto observa seus colegas se dilacerarem com um misto de horror e excitação; e a rigidez ambiciosa de um Regé Jean-Page quietamente ameaçador. Eles são todos ótimos como conceitos cênicos, e elevam algumas das trocas mais frívolas do roteiro de Koepp para o patamar de bom melodrama. Código Preto dificilmente consegue ser mais do que isso.

Da forma como está, ele é uma emulação de John le Carré que perde de vista justamente a magia fundamental do grande autor inglês: para ele, os relacionamentos eram o foco porque realmente importavam. O fervor ideológico de Charlie em A Menina do Tambor, o cinismo cansado de Smiley em O Espião que Sabia Demais, a viuvez ressentida de Justin em O Jardineiro Fiel… as tramas dele suplantam o prazer adulto do jogo de gato-e-rato porque encaram angústias reais com uma honestidade que só mentirosos profissionais poderiam exibir. Soderbergh e Koepp nunca fazem o mesmo aqui, soletrando assim a receita para um thriller de espiões patentemente divertido, mas também patentemente esquecível.

Nota do Crítico
Bom
Código Preto
Black Bag
Código Preto
Black Bag

Ano: 2025

País: Reino Unido

Duração: 93 min

Direção: Steven Soderbergh

Roteiro: David Koepp

Elenco: Regé-Jean Page, Cate Blanchett, Naomie Harris, Tom Burke, Pierce Brosnan, Michael Fassbender, Gustaf Skarsgård, Marisa Abela

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