O Homem Cordial chega atrasado no debate sobre ódio e militância

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O Homem Cordial chega atrasado no debate sobre ódio e militância

Filme rodado em 2018 tem as melhores intenções, mas erra no foco e pouco agrega à discussão em 2023

Omelete
4 min de leitura
16.05.2023, às 11H57.
Atualizada em 16.05.2023, ÀS 15H01

Talvez você já tenha ouvido falar do “homem cordial”. Criado por Sérgio Buarque de Holanda (pai de Chico Buarque), o conceito define o brasileiro como alguém passional. O nome vem de “cordialis”, que em latim quer dizer algo relativo ao coração.

Na visão do sociólogo, principalmente no livro Raízes do Brasil, somos indivíduos que fogem das convenções sociais, dando a qualquer relação uma natureza familiar. De certa forma, é daí que vem o também famoso “jeitinho brasileiro”, cheio de improvisação.

Não é por acaso que o cineasta Iberê Carvalho (de O Último Cine Drive-in) pega emprestada a expressão cunhada por Holanda para o seu mais novo filme, O Homem Cordial, que estreou nos cinemas no último fim de semana.

A história se passa quase que totalmente no decorrer de uma única noite nas ruas de São Paulo. Aurélio Sá (Paulo Miklos) é um roqueiro que retornou com a sua outrora famosa banda para um reencontro nos palcos. No entanto, a apresentação é interrompida pelos protestos da plateia.

É que o músico, horas antes, havia se envolvido em uma confusão ao proteger um garoto acusado de roubo nas ruas do bairro dos Jardins - o que resultou na morte de um policial à paisana.

A partir daí, o personagem de Miklos precisa lidar com pessoas enraivecidas, infladas por vídeos compartilhados nas redes sociais. Sem oportunidade de defesa, o músico é considerado culpado pela tragédia e é cancelado. Perdido, Aurélio encontra ajuda em um grupo de jornalistas que produz conteúdo voltado a comunidades e em um ex-colega de banda, Béstia (Thaíde).

O grupo tenta achar o garoto que deu início a todo o caso, Mateus (Felipe Kenji), que está desaparecido. Nesse meio tempo precisam enfrentar a violência dos policiais, que desejam vingança.

Isso é acompanhado de uma câmera nervosa, ao estilo documental, com planos mais longos. A interessante fotografia e as locações reais transformam São Paulo em um importante personagem.

Dessa forma, Carvalho busca entender o Brasil moderno sob a ótica de Sérgio Buarque: se o passionalismo do homem cordial original resultava em irreverência, a pessoa cordial de hoje é corrompida pelo urbanismo e inflada pela raiva via redes sociais, muitas vezes manipuladas por grupos com interesses próprios.

Esta é uma visão cínica. Ninguém no filme é amigável: estão sempre todos desconfiados, com respostas duras e secas. Nem mesmo o protagonista é carregado de emoções puras, já que tudo começa porque ele também queria apenas militar a partir de uma posição social que lhe favorece.

De boas intenções…

No papel, O Homem Cordial é carregado de boas ideias, querendo debater uma miríade de temas. O problema fica por conta da execução.

Para começar, o longa-metragem foi filmado em 2018 - ano da eleição de Jair Bolsonaro, quando a mensagem do filme ganhou contornos mais concretos para nós, brasileiros.

Não que a análise hoje seja muito diferente: a obra até antecipa muito do que vemos atualmente, com pessoas se gabando de assassinatos pela internet, cultura do cancelamento ou com o que aconteceu na escola estadual Thomazia Montoro, em São Paulo.

Em 2019, quando ficou pronto, o longa era para nos alertar para onde estávamos indo. Tanto é que foi bastante elogiado no Festival de Gramado daquele ano, com Paulo Miklos vencendo o Kikito de Melhor Ator.

Hoje, apenas ecoa onde estamos. Chegou atrasado, soando redundante e vago.

Isso não é culpa da produção. Nem foi por causa da pandemia. É reflexo de um mercado audiovisual complicado, no qual produções assim demoram anos para verem a luz do dia, mesmo estando praticamente prontas. Situação que ficou ainda mais grave no governo anterior, o que efetivamente atrasou este lançamento.

Essa nem é a primeira tentativa de uma visão moderna para o conceito de Sérgio Buarque de Holanda. O Animal Cordial, estrelado por Murilo Benício, veio antes, em 2017.

O Homem Cordial também apresenta desafios em sua narrativa, com um roteiro bastante confuso e diálogos superficiais. Embora em alguns momentos consiga transmitir autenticidade, em outros parece refletir uma perspectiva ingênua, como a de alguém que experimentou o mundo real por meio de Tropa de Elite.

Podemos até dizer que este é um exemplo de “filme cordial”, que se deixa levar pela passionalidade em contar a sua mensagem, exigindo um grande grau de boa-vontade do espectador. Na prática, prega apenas para os convertidos e não consegue pautar uma discussão mais ampla, que o assunto exige.

De certa forma, o longa-metragem é exatamente como o seu protagonista: alguém que queria ajudar, mas acabou cometendo uma série de equívocos.

Nota do Crítico
Regular
O Homem Cordial
O Homem Cordial

Ano: 2018

País: Brasil

Duração: 1h23 min

Direção: Iberê Carvalho

Elenco: Paulo Miklos

Onde assistir:
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