Em Sol Secreto, o filme anterior do diretor sul-coreano Lee Chang-dong, a protagonista passa por provações diversas e não parece encontrar, na realidade ao seu redor, motivos para superá-las. Uma personagem religiosa diz que é importante ver Deus nas pequenas coisas, como num raio de sol, mas a protagonista responde: "Um raio de sol é apenas um raio de sol".
Lee volta a testar a dor de uma mulher em Poesia (Shi, 2010), o seu longa mais recente, prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes. Desta vez, porém, um raio de sol não é só um raio de sol. Filme sincero que parte de uma trapaça, Poesia força a personagem a encarar o mundo com outros olhos e, por extensão, impõe também ao espectador esse novo olhar.
poesia
34a. mostra de cinema
poetry
mostra 2010
lee chang-dong
A trapaça, implícita no título, é deixar claro, para quem não estava reparando, que há poesia em tudo aquilo que enxergamos. Mija (Yoon Jeong-hee) é uma avó que já passou dos seus 60 anos e agora procura coisas com que se ocupar. Ela se matricula em um curso de poesia. Estuda aplicadamente, mas não consegue escrever. Quando seu professor diz que há muito a se versar sobre uma mera maçã, por exemplo, Mija passa minutos observando uma, antes de descascá-la meio desapontada com a inspiração que não vem.
A realidade tratará de dar à senhora material para sentir... A avó descobre que o neto que ela sustenta abusou sexualmente, com outros amigos de escola, de uma menina que acaba de se suicidar. Mija precisa juntar dinheiro para calar a mãe - dizem os pais dos outros garotos - mas o que ela ganha cuidando de um velho sequelado por um derrame não é suficiente. E as más notícias estão só começando.
Poesia é um melodrama em acordo com o formato que o gênero adotou na segunda metade do século passado no cinema: histórias prioritariamente femininas, de desarranjo adulto diante do tempo e do mundo em constante mudança. Nos melodramas, questões cotidianas, como não ter dinheiro para pagar alguma coisa, se revestem de importância vital não só para o personagem mas também para o espectador. Revestem-se, por assim dizer, de poesia.
O filme de Lee Chang-dong seria, portanto, um Dançando no Escuro do bem. Ambos lidam com as convenções do melodrama de forma metalinguística, mas Poesia não sobrecarrega conscientemente sua heroína de desgraças para sabotar o gênero de dentro para fora, como faz Lars von Trier, e sim para devolver ao melodrama o que suas cenas mundanas têm de transcendentais (se o melodrama hoje precisa desse serviço de restauração, já é outra questão).
O fato é que o diretor tem sensibilidade para os detalhes, não importa se for só um jogo de badmington. O texto premiado em Cannes é mesmo redondo - Mija está ao tempo todo se questionando o que é poesia, e descobrindo a valiosa lição de que poético não é necessariamente sinônimo de belo - e a atuação de Yoon Jeong-hee ajuda a elevar Poesia, um filme que no papel parece bater numa nota só mas na tela se engrandece.
Ano: 2010
País: Coréia do Sul
Classificação: 18 anos
Duração: 139 min
Direção: Lee Chang-dong
Roteiro: Lee Chang-dong
Elenco: Jeong-hie Yun, Hira Kim, Da-wit Lee, Myeong-shin Park, Yong-taek Kim, Kim Min-Jae , Ahn Nae-sang