Quando comecei a ver David Byrne’s American Utopia, não sabia o que esperar. Particularmente, não sou muito fã de concertos/musicais vistos pela TV e, assim como outras pessoas, acredito que a emoção de assistir a um show ao vivo e a cores é o que faz a experiência realmente valer a pena. No entanto, confesso que me surpreendi bastante com a versão do espetáculo de David Byrne da Broadway para o cinema.
O cantor uniu forças com ninguém menos que o aclamado diretor Spike Lee para transformar o concerto em um filme. O resultado da parceria, de fato, faz com que o espectador seja teletransportado para aquela plateia animada do Teatro Hudson, em Nova York. O vocalista do Talking Heads aparece no palco apoiado por uma banda de 11 integrantes, todos descalços e de ternos cinzas, sem os adereços que normalmente estamos acostumados a ver em musicais da Broadway. A relação é com o minimalismo que se viu em registros do próprio Talking Heads, como o clássico Stop Making Sense (o do terno de Byrne superdimensionado), encenado por Jonathan Demme em 1984.
À primeira vista, parece algo incomum, mas enquanto o filme avança faz total sentido para o efeito que o músico pretende causar no público: o foco são as pessoas e as conexões humanas. Isso fica evidente nos monólogos de Byrne, entre uma canção ou outra, quando ele explica como somos fascinados por olhar mais para outros humanos, do que para qualquer outro objeto, coisa ou pôr-do-sol. No repertório, Byrne combina faixas de seu álbum solo mais recente, American Utopia, de 2018, com os sucessos do Talking Heads, como "Once in a Lifetime" e "This Must Be The Place". Ao ver a plateia se levantando da cadeira e se divertindo cantando as músicas - as apresentações aconteceram entre meados de 2019 e o início de 2020, e novas apresentações estão marcadas para setembro de 2021 - dá vontade de fazer o mesmo em casa.
Além do entretenimento contagiante, Byrne emenda assuntos mais sérios, como a importância do voto nos EUA, onde a participação nas eleições é facultativa. Em outro momento, ele e os integrantes da banda se ajoelham
e prestam homenagem ao astro da NFL e ativista de direitos civis, Colin Kaepernick, em um protesto contra a brutalidade policial e a desigualdade racial nos Estados Unidos. Quando ele interpreta um cover de "Hell You Talmabout", de Janelle Monáe, fotos e nomes de pessoas negras vítimas de violência ou silenciadas por autoridades aparecem em um telão; entre elas está a vereadora Marielle Franco.
A vantagem de ver o espetáculo de casa é que você pode notar detalhes que normalmente não conseguiria prestar atenção se estivesse na plateia de um teatro. Cineasta cada vez mais interessado nos espaços cênicos do teatro, Spike Lee usa vários ângulos de câmera para filmar toda a ação e expressões do elenco no palco. A coreografia é sincronizada, às vezes como uma marcha, e os efeitos com luzes criam um dinamismo que torna a experiência nem um pouco monótona.
Valorizado em tempos de Black Lives Matter, American Utopia é inspirador e também está em sintonia com a posição que Spike Lee ocupa como porta-voz de questões raciais nos EUA, no ano em que seu Destacamento Blood é um dos filmes mais elogiados pela crítica. Há um senso de urgência no chamado para o engajamento, como Byrne canta em "Everybody’s Coming to My House": "We’re only tourists in this life / Only tourists but the view is nice" ("Somos só turistas nesta vida / Só turistas mas olha só que bela essa vista").
Exibido como parte da programação do Festival de Cinema de Londres, David Byrne’s American
Utopia já está disponível sob demanda na HBO dos Estados Unidos.
Ano: 2020
País: EUA
Duração: 135 min min
Direção: Spike Lee
Roteiro: David Byrne
Elenco: David Byrne