De Repente Uma Família é um bom exemplo de como uma história pode se enriquecer com especificidades. O caminho que o diretor e roteirista Sean Anders faz neste seu novo filme não difere muito da tendência da autoficção na literatura: falar de si mesmo, ainda que na terceira pessoa ou dramatizando a própria vida, traz consigo uma autenticidade quando o relato é feito frontalmente, com crueza e sem pudor.
A experiência de Anders como pai "substituto" já aparecia de forma transversal no bom Pai em Dose Dupla. Ao refazer sua parceria com o ator Mark Wahlberg em De Repente Uma Família, a autoficção de Anders se torna o tema e o chamariz da comédia; um vídeo antes do início da sessão, em que Anders e sua esposa Beth falam sobre sua vida como pais adotivos de três crianças, já dá à comédia um caráter semidocumental, a priori, que faz o espectador atentar de forma diferente para o que assistirá.
Na trama, Wahlberg faz um alter-ego de Anders, e Rose Byrne (em grande fase desde que incorporou em filmes a balzaquiana em crise sem perder o seu humor britânico autoconsciente) vive a esposa. Eles decidem adotar três adolescentes e, para isso, passam por um intensivão com outros pais, antes de encarar a adoção em si. Todo esse preâmbulo contribui para que De Repente Uma Família adquira um teor pedagógico que, aliado a um excelente trabalho de casting (coadjuvantes como a família de Brenda ou o juiz parecem estar interpretando a si mesmos, por serem pouco conhecidos ou trazerem consigo traços étnicos de fisionomia bem marcados; a atuação desafetada de Tig Notaro é outro destaque), torna o texto de Anders ainda mais "verdadeiro" sem sobrecarregá-lo das obrigações da exposição.
Escolhas de roteiro e montagem que sintetizam a ação - como as fusões na hora de um flashback ou nos saltos temporais - também deixam tudo mais dinâmico, e a impressão que fica (certamente marcada pela forma como o filme se apresenta desde o início) é a de que Anders já carregava e visualizava De Repente Uma Família dentro de si há um bom tempo: não apenas no texto preciso mas também nessas escolhas invulgadores de linguagem visual. É um pacote muito irresistível: a organização didática-pedagógica soa pertinente, o texto autobiográfico ganha autenticidade, a escalação de elenco latino traz autenticidade, e os atores entregam seu trabalho com confiança (Wahlberg sempre acaba vivendo a própria persona nos filmes e aqui, quando ele "quebra" e chora numa cena emotiva, é interessante ver esse "Wahlberg verdadeiro" adquirir outra dimensão).
De Repente Uma Família não é um arranjo de trucagens, porém. As escolhas narrativas de Anders já seriam, isoladamente, pontos de interesse - especificamente a forma como o filme não se desvia nem dilui o perverso (a loira que quer adotar um adolescente negro, o zelador pedófilo) e sabe rir das falhas de caráter de seus personagens sem rebaixá-los. A cena em que o casal discute devolver os filhos é um bom exemplo; numa comédia dramática convencional, isso serviria de ponto de virada no terceiro ato (com os filhos escutando a fala dos pais, antes da reconciliação final), mas Anders evita essa chantagem emocional. No geral o material todo poderia render um filme meio moralista mas o que se vê no fim em De Repente Uma Família está mais próximo de um conto moral capraesco como A Felicidade não se Compra - com uma família nuclear nova mas nem tão tradicional assim.
Ano: 2018
País: Estados Unidos
Duração: 119 min
Direção: Sean Anders
Roteiro: Sean Anders, John Morris
Elenco: Mark Wahlberg, Isabela Moner, Rose Byrne