No começo de Doméstica, um plano do lado de fora de uma casa modernista, em forma de cubo, vem acompanhado de uma pregação no rádio; o locutor fala de "uma ilha em que moravam o amor e a alegria". A associação que se faz - a casa é a ilha - não é estranha na cinematografia do diretor Gabriel Mascaro.
domestica
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Quando fez Um Lugar Ao Sol em 2009, Mascaro discutiu a realidade da elite que tem coberturas em edifícios em capitais brasileiras. A arquitetura e o urbanismo à brasileira como fatores de exclusão social também estão presentes em Doméstica, mas em menor grau. Diferentes espaços de convívio ajudam a entender um pouco a história de servilismo e paternalismo que marca a relação de patrões e empregados domésticos no país.
Aqui, a proposta de Mascaro é um pouco parecida com a de Prisioneiro da Grade de Ferro: passar aos documentados o poder sobre a captação das imagens. Em Doméstica, sete adolescentes ganham câmeras digitais para registrar, dentro de suas casas, durante uma semana, a rotina de suas empregadas. Depois, com o material bruto em mãos, Mascaro então edita como lhe convém.
O resultado não tem a preocupação de ser um manifesto poético, quase um testamento, como os vídeos que os presos do Carandiru de Prisioneiro da Grade de Ferro mandaram para o mundo. Quando os jovens patrões de Doméstica gravam e entrevistam seus empregados, em descanso ou em momentos de trabalho, o material carrega consigo a trivialidade de situações que se repetem sem mudança, dia após dia. (Não espere o exotismo pseudoantropológico de um Domésticas de Fernando Meirelles, portanto.) Ainda assim, não é difícil identicar ali as confusões entre público e privado que marcam a vida de quem mora com o chefe.
Mascaro conseguiu não apenas casos típicos de desvio comportamental - o jovem que vê a empregada como uma segunda mãe, o bebê da doméstica que a patroa trata como enteada -, que geralmente se transformam em jogos de poder e chantagem emocional, como também exemplos excepcionais de dependência, como do senhor de idade que virou empregado para sobreviver ou da doméstica, filha da caseira da bisavó da patroa, que passou a vida toda ao lado da chefe, como provavelmente sua mãe antes dela.
Essa pré-seleção que busca perfis extremos abre margem a críticas - mesmo um filme importante como Edifício Master é frequentemente diminuído por fazer um recorte social supostamente enviesado, que privilegia o estranho e o raro - mas sem dúvida rende grandes dramas. Neles percebemos como estão arraigadas no Brasil, de geração em geração, as desequilibradas relações de trabalho que se travestem de afeto - como diz aquele locutor do começo, para quem "só o tempo é capaz de entender um grande amor".
Se é de um problema geracional que, em boa parte, Mascaro está tratando, então o que o olhar dos adolescentes cinegrafistas pode acrescentar à discussão? O fato de empunhar uma câmera e, a partir daí, "perceber" a presença dos empregados transforma esse olhar? Não necessariamente, mostra Doméstica. O filme tem sido reprovado na imprensa por uma alegada falta de apuro estético, mas o fato é que o olhar do jovem patrão segue quase sempre inalterado, automatizado pela rotina. Não há uma troca.
No fim, é isso que torna Doméstica impactante mas tristemente insuficiente, como se fosse mesmo um filme inacabado. Na maioria das vezes, o olhar dos jovens só consegue pegar o que já lamentamos: uma dinâmica desigual de poder (a menina judia grava o depoimento da empregada em plongée), um desarranjo espacial (a distância da porta da sala à porta da cozinha parece um abismo, ou a empregada que come na mesa com todos mas dorme isolada num quarto do fundo) e o desrespeito à privacidade (o idoso, por ter virado empregado já adulto, é quem mais se esconde, mas a câmera invade seu quarto e o banheiro sem notar a vergonha).
Na verdade, a grande oportunidade que Doméstica traz é extrafilme. Com a aprovação da PEC das Domésticas, emenda constitucional que regulariza os direitos de diaristas, babás, jardineiros e motoristas particulares, o filme pode ajudar a entendermos melhor o servilismo no Brasil - uma questão que, a julgar pelo grosso do material coletado por Mascaro, era desimportante para quem se acostumou a ignorá-la.
Doméstica | Cinemas e horários
Ano: 2012
País: Brasil
Classificação: 12 anos
Duração: 75 min
Direção: Gabriel Mascaro