Poucos filmes de terror de 2023 têm ou (aposto) terão imagens tão marcantes quanto as que preenchem Drácula: A Última Viagem do Deméter. O diretor André Øvredal (Histórias Assustadoras Para Contar no Escuro) sabe se aproveitar da ambientação náutica de sua história, abusando de silhuetas recortadas contra o céu noturno, de vultos escondidos por trás do pano e das cordas das velas do seu navio, de corredores estreitos ladeados pelas tábuas frágeis que compõem o casco da embarcação. Recrutando dois diretores de fotografia, o seu parceiro habitual Roman Osin e o mais veterano Tom Stern (indicado ao Oscar por A Troca), Øvredal cria um universo imagético excitante… para um filme que é tudo, menos isso.
Muita gente vai dizer que dava para ter previsto o fracasso de A Última Viagem de Deméter, como narrativa, só pela premissa: trata-se de uma adaptação (ou melhor, expansão) de um único capítulo do Drácula de Bram Stoker, ambientado no navio que leva o rei dos vampiros e seus pertences da Transilvânia para o Reino Unido. Já sabemos, seja pelo livro ou pelas dezenas de filmes que o adaptaram, que o barco chega dilapidado ao litoral britânico, uma vez que Drácula trata de “se alimentar” da tripulação. Houve quem brincasse, no Twitter, que o filme sofria do mesmo mal que a própria tripulação do Deméter: no stakes (“sem estacas”, na tradução literal, mas também uma expressão para indicar uma situação em que nada está de fato em risco).
É possível, no entanto, contar uma boa história da qual já sabemos o desfecho, e o cinema nos dá dezenas de exemplos: Moulin Rouge! abre nos contando que Satine (Nicole Kidman) vai morrer nos braços de Christian (Ewan McGregor); quase todas as versões de Romeu e Julieta acabam exatamente do mesmo jeito, com os dois jovens amantes cometendo um duplo suicídio acidental; todo mundo sabe que Elizabeth Bennett e o Sr. Darcy ficam juntos no fim de Orgulho e Preconceito; e você muito provavelmente sabia o que o governo americano planejava fazer com a bomba atômica de Oppenheimer.
O que eu quero dizer é que, especialmente quando o material base é tão escasso quanto no caso deste filme, até tramas com finais gravados a ferro e fogo - seja na história, na sua própria mitologia ou na literatura - deixam espaço narrativo para os roteiristas inventarem seus personagens, as relações entre eles e as circunstâncias do que os leva ao seu destino. Se o final é trágico, ainda melhor, porque cada diálogo e desenvolvimento de trama pode ser colorido pela consciência pesarosa que temos do que vem por aí. O problema é que Drácula: A Última Viagem do Deméter se mostra incapaz de fazer qualquer uma dessas coisas com espirituosidade ou, pelo menos, eficiência.
A culpa é do roteiro, assinado por Bragi F. Schut (Trem-Bala) e Zak Olkewicz (Samaritano), que alterna entre tropeçar no óbvio com seus lances discursivos sobre religiosidade e abraçar com força o chavão hollywoodiano da construção de franquia. Seja em seu herói médico água com açúcar (Corey Hawkins), em seu simulacro de liberação feminina com a personagem “durona” de Aisling Franciosi, ou na fabricação de um gancho absolutamente despropositado que marca os seus minutos finais, A Última Viagem do Deméter tem todas as marcas da linha de produção em massa que o gerou - e nenhuma consciência de si mesmo como evidência maior do plano absurdista ao qual chegamos dentro do sistema de estúdios hollywoodiano.
De fato, talvez esse seja o filme que prova, de uma vez por todas, o caráter opressivo e inescapável desse mesmo sistema. Ver Drácula: A Última Viagem do Démeter é entender que não há design de criatura arrepiante ou senso estético carregado de energia que salve um cálculo corporativo vazio querendo se passar por filme. Taí a lição que os produtores deveriam ter tirado daquele capítulo do livro de Bram Stoker: tal qual uma história sem alma ou propósito, um navio sem tripulantes nunca vai chegar ao seu destino - ou, ao menos, não vai chegar inteiro.
Ano: 2023
País: EUA/Reino Unido/Malta/Itália/Alemanha
Duração: 118 min
Direção: André Øvredal
Roteiro: Zak Olkewicz, Bragi F. Schut
Elenco: Corey Hawkins, Liam Cunningham, David Dastmalchian, Aisling Franciosi