Existem tantos elementos que fazem parte de Em Um Bairro em Nova York que é difícil entender como o diretor Jon M. Chu encaixou tanta coisa em uma tela. A celebração da herança latina, de uma área em Nova York, do fenômeno migratório, de diferentes sentimentos, relações, culturas. A sensação ao fim de Em Um Bairro em Nova York é de que a tela de cinema aumentou só para caber tudo que a produção foi capaz de realizar.
Se tudo isso soa como se o musical fosse um delírio otimista, é preciso enfatizar que esta festa é, na realidade, uma afirmação contra cada uma das dificuldades enfrentadas pela comunidade latina do bairro de Washington Heights que faz parte da trama. Aqui, somos guiados por Usnavi - vendedor de um mercadinho - que sonha em voltar para a terra dos seus pais, na República Dominicana. Este é o seu sonho. Mas cada um dos personagens ao seu redor é guiado pelo seu próprio sueñito - seja de se encaixar, de conseguir uma educação, de mudar de casa. Em Washington Heights, a gentrificação tem tornado a vida cada vez mais difícil, mas um povo que já aguentou escravidão e ditaduras sobrevive a qualquer coisa, como diz Daniela, dona do salão de cabelereiros forçada a realocar seus negócios.
Quando estreou na Broadway em 2008, a primeira peça do criador de Hamilton mencionava Donald Trump como um exemplo de sucesso financeiro na canção "96,000". Para a adaptação que chega às telonas, uma das primeiras mudanças foi a retirada do nome do ex-presidente norteamericano, e o movimento é mais do que significativo. A adaptação de Chu - que contou com a mesma roteirista do musical, Quiara Alegría Hudes - aborda muito mais abertamente a questão política, adicionando não só manifestações como um obstáculo relevante em torno de cidadãos ilegais. Nesse contexto, o nome de Trump tem outra conotação em 2020.
Não é novidade que alterar um trabalho original tão querido - ainda mais de um autor que tem sua legião de fãs como Miranda - é uma questão delicada. E Em Um Bairro em Nova York não apenas acrescenta tramas mais reais como muda completamente a ordem dos acontecimentos, altera canções, e retira a questão financeira central de Abuela Claudia, a matriarca da comunidade latina, que era o fio condutor da peça. Mas tudo isso é feito com tanto esmero e raciocínio, que a adaptação de Chu é um exemplo de ousadia certeira, uma que toma liberdade pelo bem do material original e só beneficia a mensagem da obra (se cabe uma ressalva, o desfecho do musical - que se mantém na adaptação - faz sentido, mas segue levemente insatisfatório).
Todos esses elogios também poderiam fazer parecer que Em Um Bairro em Nova York é um musical gigantesco cheio de pirotecnias, estrelas de Hollywood, grandes figurinos e malabarismos visuais. E existe uma coreografia inesquecível na piscina, mas é precisamente no visual comum das ruas do bairro e dos personagens centrais que está a alma do longa de Chu. Anthony Ramos, Melissa Barrera, Leslie Grace e Corey Hawkins carregam tanto as performances musicais quanto suas atuações com uma simplicidade rara de ver. São as sensacionais danças, festas, bandeiras e a batida latina das canções de Miranda que fazem da experiência, épica.
De quebra, o musical também tem uma sensação de frescor no simples fato de entregar um elenco - e uma gama de figurantes - tão inédita para Hollywood, principalmente em um contexto de orgulho. Apesar do filme ter recebido críticas por não abarcar a pluralidade de cores da herança latina, a produção é um passo na direção certa, e um curioso antecessor para o remake de Amor, Sublime Amor marcado para o fim do ano. Com direito até a easter egg de Hamilton, Em Um Bairro em Nova York é um caso valioso de uma adaptação que soube tirar proveito de sua realização, não apenas pela oportunidade de levar a história para sua essencial locação, mas por ter a esperteza de se atualizar.
País: EUA
Direção: Jon M. Chu
Elenco: Lin-Manuel Miranda, Anthony Ramos