Uma das grandes características das histórias de mistério eternizadas enquanto gênero por Arthur Conan Doyle e Agatha Christie é a forma como o senso de perigo é quase elusivo, translúcido. Mesmo que nos livros de Agatha pessoas morram entre as páginas, não há espaço para construir luto ou imprimir os valores da perda. Os personagens são só vítimas ou suspeitos, ficam pela superfície, uma vez que o mais importante é desvendar o jogo que está sendo engendrado na surdina.
Por conta disso, a fórmula dos mistérios a serem desvendados se revelou uma mina de ouro para a indústria do entretenimento. O procedural (história independente que se desenrola e se encerra no mesmo episódio) tem suas bases estabelecidas nesse conjunto de características, que enriquecem uma trama de reviravoltas, mas esvaziam seu alcance emocional. Além disso, por vezes o enredo criado para esconder o mistério é tão complexo que faz com que ele seja irrastreável.
Enola Holmes, quando chegou na Netflix, tentou encontrar um jeito de aliviar essa superficialidade dando para a protagonista uma rede de contatos fixos que não só a ajudariam no processo de investigação, mas também serviriam para fazer com que ela tivesse impulsos emocionais. A admiração pela mãe Eudoria (Helena Bonhan Carter), a rivalidade com o irmão Sherlock (Henry Cavil) e até mesmo a pequena tensão romântica com Tewkesbury (Louis Partridge)... essa era a rede que mantinha Enola mais interessante que uma simples investigadora adolescente. Natural, então, que isso fosse se expandir numa continuação.
Harry Bradbeer e Jack Thorne retornam para a direção e escrita da personagem com o compromisso de manter o ritmo esperto do primeiro filme e ainda aumentar tudo que deu certo e ecoou em pedidos da já estabelecida legião de fãs da personagem. Vivida por Millie Bobby Brown, uma estrela de Stranger Things, Enola Holmes é filha de uma estrela de Harry Potter e irmã do maior super-herói do mundo. O fandom do filme não deve ser subestimado. Essa sequência tinha muito o que provar, muito o que superar e muito o que confirmar. De certa forma, essa ansiedade acabou aparecendo no longa.
A Grande Família
Depois de ter se tornado uma investigadora efetiva (com direito a escritório e tudo), Enola começa o segundo filme enfrentando o peso de ser a caçula de uma família famosa pela própria peculiaridade. Apesar de estar ansiosa para trabalhar, ela vive à sombra de Sherlock, enfrentando problemas para ser contratada por quem quer que seja. Ela é questionada por ser uma menina, questionada por ser uma menina muito jovem, questionada por ser uma Holmes e questionada por não ser Sherlock Holmes. Natural, então, que ela fosse ser procurada por quem está igualmente à margem.
É assim que Enola acaba indo investigar o desaparecimento de uma menina que trabalha numa fábrica de fósforos. O desaparecimento, é claro, foi completamente ignorado por todos os setores da sociedade vigente e se Enola não estivesse ansiosa por um novo caso, ele talvez nunca fosse esclarecido. Há um pequeno pano de fundo real na trama da fábrica, mas é uma inspiração realmente mínima. Os objetivos do roteiro de Thorne são claros: ele quer aproveitar sua protagonista para continuar provocando o espectador a perceber os códigos machistas que regiam aquela época. Com exceção de Sherlock, praticamente todos os personagens importantes são feitos por mulheres, traçando uma linha interessante, que coloca as mulheres em todas as posições de tensão da trama; das heroínas às vilãs, das vítimas às algozes, das que elucidam até as que escondem.
A narrativa do filme, a partir daí, segue a estrutura que é de praxe pro gênero. Enola vai se infiltrando nos lugares, conversando com pessoas, escapando de perseguições daquela maneira quase bufa - incluindo quedas de telhados e destruições de barris. Em dado momento, ao tentar fugir de uma pessoa envolvida no caso, ela se esconde em arbustos e coloca uma folha na frente do rosto. A condução artística de Enola Holmes é bastante honesta: esse é um filme para todas as idades, para divertir... a tal superficialidade emocional do gênero, nesse caso, cai como uma luva. O perigo, a morte, nada disso pode ser dramático demais.
Com mais de duas horas e dez de duração (um pouco mais que no primeiro), Enola Holmes 2 se esforça para manter o ritmo intenso que se tornou sua marca registrada. Contudo, apesar do filme ser competente em se afastar de qualquer possibilidade de tédio, há também um certo exagero na escala de acontecimentos. O longa tem uma irregularidade climática, convencendo o espectador diversas vezes de uma sequência final que não vem; e revelando novos envolvidos a cada uma dessas possibilidades de fim. Depois de um tempo, essas revelações já não são tão impactantes assim.
Apesar desse bombeamento climático exagerado, o filme consegue imprimir na sua linguagem familiar uma bem-vinda mensagem de força e independência, além de ter a seu favor um elenco extremamente carismático (só a sequência entre Enola, Eudora e Edith na floresta já vale nosso tempo). O longa quer tanto ser uma série procedural que até termina com cara de fim de episódio, deixando portas escancaradas para novas sequências. Se vierem, todo mundo ganha. Enola Holmes está entre nós para ser o tipo mais sincero de diversão.
Ano: 2022
Direção: Harry Bradbeer
Elenco: Helena Bonham Carter, Millie Bobby Brown, Louis Partridge, Henry Cavill