Que a premissa do novo O Exorcista se baseie na sugestão de colocar não uma mas duas crianças para ser possuídas é o tipo de sem vergonhice que se espera de um terror despudorado. O principal risco que David Gordon Green corria ao revisitar o clássico de 1973 seria o de tentar rivalizar com o original na seriedade, na densidade; o filme de William Friedkin é mais eficiente quando trata o sobrenatural como uma história de realismo e nesse sentido pode-se dizer que O Exorcista era um precursor do que hoje se entende como um terror “elevado”.
O que se vê em O Exorcista - O Devoto, porém, é o resultado de uma indecisão de propósitos. Ao mesmo tempo em que dobra a possessão e encena com energia e visível contentamento os instantes de susto e horror, o diretor David Gordon Green almeja que seu O Exorcista tenha também algo elevado a dizer sobre a religião e o mundo. O diretor que revisitou Halloween e fez da narrativa de Michael Myers um pretexto culposo para comentar um mal-estar generalizado do século XXI não resiste à tentação de tornar o teste de fé de O Exorcista uma parábola extremamente literal sobre a falência dos nossos contratos sociais.
No centro dessa proposta está a dinâmica entre duas famílias americanas da Geórgia, uma negra e uma branca, e os diferentes graus de adesão e recusa que as pessoas dessa comunidade mantêm com a religião organizada. Para não incorrer em spoilers, basta dizer que O Devoto - de modo bastante previsível - defende que só a união entre as pessoas é capaz de afastar o mal do mundo. Essa platitude das boas intenções toma no filme a forma de uma cerimônia de sincretismo, um evento comunitário de fato.
Esse movimento se junta à decisão de dobrar a possessão; se não é possível rivalizar com O Exorcista original, que se abrace o exagero, então além de duas crianças protagonistas agora teremos também dois ou três diferentes credos na arena climática contra o capeta. A multiplicação, em si, não é um problema. A questão é como o filme lida (ou deixa de lidar) com os desdobramentos dessa escolha. Em última instância, o que O Devoto está dizendo é que cada pessoa pode ser seu próprio exorcista, e para isso basta crer.
Essa decisão tira a especificidade do exorcismo em si: realizar um exorcismo se torna um gesto discursivo, um ponto a ser provado numa discussão, e não mais uma experiência transformadora (e em boa medida silenciosa, individual). O que tínhamos em 1973, inscrito no sacrifício do padre Karras, era um dilema interiorizado sobre a dramática impossibilidade de comprovar materialmente a existência de Deus no mundo. Isso sequer é uma questão em O Devoto, um filme feito numa era de ceticismo que inclusive ressignifica o martírio de Karras como um capricho de classe. Agora a única coisa que importa é dominar a narrativa.
Daí vem toda a tendência do filme em direção ao que é sublinhado, literal. Mesmo nos seus bons momentos, nos dois primeiros atos, quando ainda tateia seu mistério, O Devoto já pesa a mão na montagem e na edição de som (o caos e os barulhos da rua, por exemplo) para insinuar um mundo em desconcerto. O que era pavor insidioso em 1973, como tratar um exame médico de rotina como uma espécie de tortura do corpo de Regan, agora vem sempre sublinhado para demarcar o mal-estar (a passagem pelo hospital envolverá um toque ginecológico, por exemplo, uma invasão literal).
A participação de Ellen Burstyn no filme pode parecer deslocada ou mal aproveitada, mas no geral ela se presta a ser uma boa síntese do impasse em que Gordon Green se coloca. Por um lado, transformar Chris MacNeil numa escritora de sucesso é uma solução descomplicada e até prazerosa, na medida em que é puramente funcional e vulgar; o gênero do terror tem dezenas de escritores que metalinguisticamente são desafiados na ficção a provar do seu próprio remédio (basta ver À Beira da Loucura de John Carpenter para traçar pelo menos até H.P. Lovecraft a origem dessa tradição). Por outro lado, fazer de Chris MacNeil uma comentarista de sua história inflama ainda mais o fato de O Devoto não saber olhar para si próprio sem ser com cinismo e distanciamento. No fim talvez fosse o caso de chegar nesta empreitada temerária de reboot/continuação um pouquinho mais temente a Deus.
Ano: 2023
País: Estados Unidos
Duração: 111 minutos min
Direção: David Gordon Green
Roteiro: David Gordon Green
Elenco: Leslie Odom Jr., Ellen Burstyn