“Me mostre que você ainda quer estar aqui”, repete o técnico Pops (Stephen McKinley Henderson) para a lutadora Jackie Justice (Halle Berry) em um momento chave de Ferida. É uma frase que encapsula muito do que o filme significa, tanto dentro da sua narrativa quanto, simbolicamente, fora dela. Carregado de todos os clichês do drama de esportes, o filme lançado pela Netflix só encontra ressonância emocional porque foi feito por Berry, e porque serve tanto para provar que ela “ainda quer estar aqui” - fazendo filmes, se comunicando com o público - quanto o retorno de Jackie aos ringues.
No roteiro da estreante Michelle Rosenfarb, Jackie Justice é uma ex-lutadora do UFC que, seis anos antes de nossa história começar, fugiu do octógono no meio de um confronto e abandonou o esporte. É quando Manny (Danny Boyd Jr.), o filho que ela abandonou anos antes com o pai, reaparece em sua vida; a responsabilidade de prover para o pequeno faz com que Jackie considere um retorno às lutas profissionais, decisão que vai levar a uma transformação radical em sua vida.
Se você leu essa sinopse e pensou que já sabe exatamente o que vai encontrar em Ferida, a verdade é que você está, em grande parte, certo. O filme pinta exatamente o retrato difícil da realidade de Jackie que se espera, incluindo abordagens sensíveis, mas um tanto apressadas, de temas como violência doméstica, alcoolismo, abuso parental e saúde mental; e mostra como ela encontra seu caminho nessa realidade de maneira tortuosa, em meio a muitos tropeços e hesitações, desenhando uma jornada de superação pessoal que acompanha a evolução esportiva da personagem, pontuada por montagens de treinamento embaladas por hip hop.
É justamente a presença de Berry que eleva um pouco esse material inegavelmente repetitivo, por mais que seja conduzido com alguma competência no texto. Estreando na direção, ela mostra prezar a proximidade da câmera com os personagens, inserindo-nos no mundo deles, mas também demonstra olho afiado para imagens curiosamente poéticas em meio à narrativa opressiva do longa. O pequeno Manny, gravado de costas, curvando-se diante de um teclado (o instrumento musical, não o de computador), é um momento particularmente indelével.
Quando chega a hora de dirigir as cenas de luta, especialmente no confronto climático entre Jackie e a campeã “Lady Killer” (Valentina Shevchenko, atleta da UFC na vida real), Berry mostra instinto impecável para filmar os aspectos mais cinemáticos do esporte, fazendo cada pancada contar - tudo enquanto, ajudada imensamente pela edição de Jacob Craycroft e Terilyn A. Shropshire, mantém as minúcias de cada movimento técnico da luta acessível também para os espectadores que não estão por dentro desse mundo.
Ferida é também um filme de atuações afiadas. Não só a própria Berry se entrega à personagem com dedicação irrepreensível, como também conduz Sheila Atim (como a treinadora - e, depois, amante - da protagonista, Buddhakan), Adriane Lenox (como a mãe de Jackie, Angel) e o ator mirim Danny Boyd Jr. a performances moduladas com precisão à jornada emocional do filme, que ajudam a garantir o envolvimento do espectador e a transformar Ferida em algo mais do que um amontoado de clichês.
Acima de tudo, no entanto, ver Berry dirigindo e estrelando esta história em específico é um golpe certeiro naquele pedaço do nosso coração que não resiste a um bom e velho comeback. Sujeitada a incontáveis indignidades desde o fracasso de Mulher-Gato, tudo após ser saudada como a anunciadora de uma nova era em Hollywood (ela segue sendo a única mulher negra a vencer o Oscar de melhor atriz), Berry prova em Ferida que ainda quer muito - e, diga-se de passagem, merece muito - estar aqui.
Ano: 2020
País: EUA/Reino Unido
Duração: 129 min
Direção: Halle Berry
Elenco: Halle Berry, Adriane Lenox, Sheila Atim, Shamier Anderson, Adan Canto