Em 2006, quatro anos depois dos assassinatos de Marísia e Manfred von Richthofen, a ré e filha do casal, Suzane, concedeu entrevista ao Fantástico sobre o crime. Vestida com camiseta da Minnie, pantufas e com uma longa franja cobrindo o rosto, a jovem falou em tom de inocência sobre como teve sua vida destruída pela influência e ganância do ex-namorado, o também réu Daniel Cravinhos, sendo induzida a tomar parte no crime. Antes da gravação da conversa, foi flagrada falando com seu advogado e recebendo uma orientação: "Chora".
A entrevista foi considerada manipulada pela reportagem da Rede Globo, que a colocou no ar em tom de denúncia contra Suzane e o advogado Denivaldo Barni. Meses mais tarde, a Justiça também descartaria a transferência de culpa da assassina: condenaria Suzane, Daniel e Cristian Cravinhos sem distinção pela autoria dos crimes, atribuindo ao ex-casal uma pena de 39 anos de reclusão e seis meses de detenção e ao terceiro réu, que confessou o crime, 38 anos de reclusão e seis meses de detenção.
É estranho, portanto, que A Menina Que Matou os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais, filmes nacionais lançados pelo Amazon Prime Video,tenham escolhido resgatar os depoimentos repletos de manipulações de fatos e estratégias de defesa dados por Daniel e Suzane à Justiça como base para suas histórias – e é mais estranho ainda que tenham feito isso em tramas separadas, dificultando ao espectador menos atento que os entenda não como fidedignos e reveladores, mas como retratos de relatos questionáveis, não só defendidos por dois criminosos condenados, mas também descartados pela Lei.
Construídos de forma a se espelharem, A Menina e O Menino partilham da mesma cena de abertura, uma recriação da descoberta dos corpos de Marísia e Manfred pela Polícia Militar de São Paulo, em 2002. Disso, a trama salta para 2006, e acompanhamos o depoimento de Daniel (Leonardo Bittencourt), no primeiro filme, e de Suzane (Carla Diaz), no segundo. A história contada por ambos é estruturalmente a mesma, mas seus papéis no destino trágico são diferentes. Na narrativa dele, ela é a garota rica com traumas que encontrou nele refúgio, usando-o para colocar em prática antigas fantasias fatais. Na dela, ele era o garoto pobre, próximo de uma realidade de crime perigosa, que tornou-se namorado abusivo e a conduziu a matar sua rica família por ganância.
Para o espectador menos informado sobre o caso, ser conduzido inicialmente por Daniel é descobrir uma verdade aterradora sobre o passado de Suzane: vítima de abusos e de violência por parte da família, é mais fácil compreender as motivações da jovem em participar (e, para muitos especialistas, mentorar) a morte dos próprios pais. Assistir à versão da garota em sequência, entretanto, apresenta outra verdade: a de Daniel como real manipulador, e dos pais de Suzane como rigorosos, mas absolutamente inocentes. A síntese dessa contraposição, feita possível só depois de quase 3h de filmes, é um sentimento de insatisfação. Para que resgatar e dramatizar elementos descartados pela Justiça em um caso já resolvido, se não irá se propor nada além de representá-los? Em dois filmes, não há resposta.
Segundo os roteiristas Ilana Casoy e Raphael Montes, a ideia de contar a história em dois filmes veio da vontade de se ater aos documentos do caso, fugindo de polêmicas como a que recai sobre Dom, série biográfica de Pedro Dom que também foi lançada pelo Prime Video. A produção foi acusada por mãe e irmã do criminoso fluminense de manipular fatos e forjar informações apenas por efeito dramático. De fato, o problema não se repete em A Menina e em O Menino, mas algo quase tão danoso acontece: ao usar como base apenas os relatos de Daniel e Suzane, os filmes não apresentam versões que complementaram e elucidaram o caso, frente à Justiça. O depoimento do irmão Andreas von Richthofen, que desmontou a denúncia de abusos manifesta pelos Cravinhos contra o casal de vítimas, por exemplo, seria chave para evitar desinformar o espectador mais preguiçoso, e até para dar peso à trama com a inclusão de uma verdade chancelada pela Lei. Ao não fabricar informações, mas apresentar as fabricações de Suzane e Daniel em uma narrativa que não favorece desconstruções, os filmes falham em suas melhores intenções.
Além disso, há uma questão mais prática: os filmes simplesmente não funcionam individualmente. Se a intenção da equipe criativa era ilustrar artisticamente a jornada que levou dois jovens a se tornarem assassinos, não seriam os depoimentos dos mesmos a melhor ferramenta para uma reconstrução respeitável. E se a intenção era colocar o pragmatismo em segundo plano em nome de um ensaio sobre o que é, de fato, a verdade, a narrativa se beneficiaria de uma estrutura de filme único, com as idas e vindas de versões conflitantes instigando o espectador a pensar.
Não são filmes sem méritos. Como Suzane, Carla Diaz surpreende com seu alcance, interpretando as duas versões da assassina (a maquiavélica e a inocente corrompida) da adolescência à maturidade, com nuances e trejeitos que, se não soam sempre naturais, o fazem de forma operística condizente com a escala da tragédia. Nas cenas de tribunal, ela pontua com clareza que Suzane caminha sempre no limiar da verdade, mesmo que isso só reforce a falta de sentido em assistir a um filme inteiro, que é na realidade apenas metade de outro filme, baseado na dramatização do relato de uma personagem manipuladora. Ainda assim, é interessante e envolvente vê-la contracenando com Leonardo Bittencourt, não só pela inegável química da dupla, mas pelos estilos diferentes de atuação. Diaz é mais teatral, expansiva, enquanto Bittencourt é mais naturalista – adjetivo aqui usado de forma totalmente elogiosa, já que isso faz com que o jovem ator de Manaus arque com a responsabilidade de aterrar as cenas mais vilanescas do casal. E consiga.
Além de um elenco de apoio que faz valer sua vasta experiência em atuações sólidas, composto por Vera Zimmermann, Leonardo Medeiros, Débora Duboc e Augusto Madeira, a direção de Mauricio Eça também traz bons momentos na construção das cenas espelhadas; ainda que, novamente, fosse mais rico poder acompanhá-las em contraposição direta, não em filmes distintos. Elementos de cena e posicionamentos de câmera e atores ajudam a fazer a experiência de ver os mesmos momentos de pontos de vista diferentes o menos maçante possível, o que não pode ser dito da reutilização de passagens inteiras entre um filme e outro. Entre erros e acertos, entretanto, fica clara a paixão pelo projeto, filmado em apenas 33 dias em processo intensivo e ainda assim marcado por uma fotografia bonita e um interessante comentário sobre o embate entre classes sociais distintas, ainda que subaproveitado (deveria ser a tese do filme, que parece persegui-la, mas nunca alcançá-la).
Há anos explorado em filmes e séries de TV norte-americanos, o subgênero de crimes reais ainda caminha vagarosamente na ficção brasileira, e é louvável o esforço dos envolvidos em A Menina Que Matou os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais em contribuir para a mudança desse cenário. Entretanto, a máxima continua a mesma quando se investe no resgate de histórias dolorosas para muitas pessoas: há de haver um propósito maior. Embora boas atuações, vislumbres de uma discussão mais profunda e o esboço de algo relevante a dizer façam valer a curiosidade pelo projeto, é difícil encontrar algo nele que não esteja melhor representado em um documentário, uma reportagem, uma página da Wikipedia ou nos próprios autos do processo de onde saíram os roteiros.
Ano: 2021
País: Brasil
Duração: 160 minutos min
Direção: Mauricio Eça
Roteiro: Ilana Casoy, Raphael Montes
Elenco: Leonardo Bittencourt, Allan Souza Lima, Leonardo Medeiros, Carla Diaz