Free Guy: Assumindo o Controle é um pequeno triunfo do cinema de entretenimento moderno. Um raro blockbuster de história original, ele serve tanto como veículo para as principais qualidades de sua maior estrela, Ryan Reynolds (Deadpool 2), quanto como uma sátira afiada, divertida e por vezes perspicaz da cultura gamer, conseguindo fugir dos frequentes erros que fizeram com que adaptações e filmes sobre jogos eletrônicos produzidos em Hollywood ganhassem sua notória má fama e entregando uma história com bom humor e coração. É um mergulho em um mundo até então inédito, mas que equilibra muito bem o novo e o familiar. Oferecendo um bem-vindo ar fresco em relação às gigantescas franquias de 10 anos ou mais que hoje monopolizam a oferta de filmes similares, a produção da 20th Century Fox (adquirida e visivelmente modificada pela Disney) ainda faz seu tributo a elas com uma dose saudável de ironia. E traz tudo isso enquanto exalta Mariah Carey, veja só!
Com carisma inegável e uma alegria perfeitamente equilibrada entre contagiante e inquietante (pense em um Ted Lasso ligeiramente mais ácido), Reynolds encarna Guy, um jogador não jogável (o famoso NPC, sigla para non-player character) de um jogo on-line do gênero battle royale chamado Free City que, frustrado por nunca encontrar o amor, decide deixar seu papel de coadjuvante e perseguir sua grande paixão: o avatar de uma jogadora conhecido como Molotov Girl, que ele ouviu cantarolar "Fantasy", faixa de 1995 da supracitada diva pop norte-americana. O problema é que nenhum personagem do game sabe que vive em uma realidade virtual, o que implica que a quebra de status quo do protagonista terá consequências no mundo real, e isso acontece rapidamente.
É que, do lado de fora de Free City, Milly Rusk (Jodie Comer) controla a crush virtual de Guy em uma busca pelo código original do jogo. Anos antes, ela e seu parceiro de programação Walter "Keys " McKeys (Joe Keery) desenvolveram um game de alto conceito cujo objetivo era apenas observacional: chamado Free World, ele seria um ecossistema digital em constante desenvolvimento via Inteligência Artificial, incorporando o conceito de livre arbítrio a uma realidade virtual. Quando o empresário ricaço Antwan (Taika Waititi) adquiriu os direitos sobre o jogo, entretanto, ele quebrou a promessa de produzi-lo em massa e o varreu para debaixo do tapete, lançando em seu lugar o battle royale desmiolado e altamente lucrativo. Foi a pá de cal na parceria de Rusk e McKeys, com ela crendo que o código do jogo deles foi usado como base para o novo lançamento e processando o ex-chefe, enquanto ele permaneceu em seu emprego.
Só que, quando Guy rompe com seu papel como bancário e frequente vítima de assaltos, e passa a navegar Free City desarmando e humilhando jogadores famosos do mundo real (mas sempre com uma tremenda educação), Rusk, McKeys, Antwan e o resto do mundo voltam seus olhos a Free City. Enquanto todos pensam se tratar de algum habilidoso hacker usando o visual de um NPC, ela vê na anomalia um potencial aliado; Keys é incumbido de entender e tentar neutralizar essa irregularidade do game; e o inescrupuloso vilão vivido por Waititi passa a enxergar mais uma maneira de ganhar dinheiro. Apaixonado pela Molotov Girl, entretanto, não demora para que o idealista personagem de Reynolds decida ser um herói aos olhos dela e de todo mundo (e de todos os mundos).
Equilibrar uma paródia de games como Grand Theft Auto, Sim City e Fortnite, pinçando com precisão as referências pertinentes e descartando a verborragia visual desnecessária, já seria difícil por si só, mas Free Guy é ainda mais ambicioso ao misturar isso com uma trama que ecoa o excelente O Show de Truman (1998) e abraça sem pudor a política do "mais é mais". A aposta vale a pena, já que em meio a diversas participações especiais (das vozes de Hugh Jackman, John Krasinski, Tina Fey e Dwayne "The Rock" Johnson" às participações de gamers como Ninja, Pokimane e cameos hollywoodianos em carne e osso que são melhores deixados em segredo), variadas cenas de ação megalomaníacas e inesperadas piadas visuais e faladas sobre o universo dos games (desde a referência à tóxica prática do teabagging até os famosos bugs e glitches que assolam os jogos on-line), o diretor Shawn Levy raramente perde a mão, entendendo que o coração da trama está em Guy, sua jornada de descobrimento e emancipação, bem como sua relação com aqueles que o ajudaram nesse caminho.
A dinâmica de Reynolds com o elenco de apoio é outro fator decisivo para que Free Guy seja um dos filmes mais divertidos do ano, começando por Jodie Comer, com quem partilha uma química surpreendente. Quem nunca assistiu a Killing Eve certamente ficará mais interessado na série de Phoebe Waller-Bridge depois de ver Comer chutando bundas como a Molotov Girl, só para trocar seu sotaque britânico pelo americano e entregar uma performance cativante e vulnerável como a desenvolvedora Milly Rusk. Joe Keery e seu inabalável topete repetem o magnetismo que marca Steve em Stranger Things, mesmo que agora na pele de um personagem mais equivocado em suas escolhas e convicções. E Waititi constrói uma excelente representação da toxicidade das grandes corporações de jogos eletrônicos em Antwan e seus ataques imaturos de raiva. Só que é Lil Rel Howery que brilha mais, repetindo Corra! e roubando a cena como mais um melhor amigo para todas as horas (especialmente as mais difíceis), âncora de um dos ápices emocionais da história.
O filme acerta até na inserção de comentários sociais pertinentes, não só sobre sexismo e outras formas de preconceito que ainda assolam os jogos eletrônicos, mas também ao trazer um herói que não mal dispara uma arma uma única vez, como tem como seu maior objetivo desarmar seus rivais. No caminho de Free Guy e a execução perfeita das suas ambições está apenas a subjetividade do humor e a mira generalista do próprio filme: há piadas para todos os gostos e idades, o que pode fazer com que muitas delas não funcionem para você. Além disso, a mão segura de Levy derrapa ligeiramente após uma grande revelação do terceiro ato, não porque o que se desenrola a partir dela tenha a credibilidade abalada de alguma forma, mas porque falta espaço para que ela não soe apressada. Nada terrível, entretanto, já que o filme coleciona tantos acertos até aí que só um reset apagaria o sorriso largo de quem está assistindo.
Ano: 2021
País: Estados Unidos
Duração: 115 minutos min
Direção: Shawn Levy
Roteiro: Zak Penn, Matt Lieberman
Elenco: Taika Waititi, Jodie Comer, Lil Rel Howery, Joe Keery, Ryan Reynolds