“Estou sufocando. Não há paisagem, nem rosto que mereça ser pintado aqui”. Quer interprete a frase do pintor francês Paul Gauguin como um reflexo da sua descrença com a Paris do final do século XIX ou, simplesmente, sua decepção com os rumos da sua carreira, fato é que ela é o pontapé da sua jornada até a Polinésia Francesa, narrada em Gauguin: Viagem ao Taiti. Partindo dos relatos de Noa Noa, diário de viagem do pós-impressionista, o diretor Édouard Deluc faz um relato romântico da primeira passagem do artista pela ilha, reproduzindo na tela os eventos que culminaram em um verdadeiro ponto de virada na sua biografia..
Privilegiando a grandiosidade e a crueza do cenário, assim como a trilha sonora intimista de Warren Ellis, o diretor dá um tom introspectivo à tentativa de Gauguin de redescobrir a natureza selvagem da sua arte. A escolha pode afastar o espectador que não tem ligação emocional ou mera curiosidade sobre o artista, por conferir um ritmo mais lento à narrativa. No entanto, a decisão é acertada. Ainda que o desejo de encontrar sua “Eva primitiva” seja o que mova o personagem, em última instância é apenas um artifício para mostrar o lado mais humano por trás do talento já muito reconhecido.
Por isso, o foco no relacionamento do pintor com sua musa, Tehura. Retratando todas as etapas do casamento temporário, desde a curiosidade e a atração até o ciúmes doentio, Deluc desconstrói a figura do gênio absoluto. Aos poucos, percebe-se que o afeto de Gauguin por sua esposa é baseado em uma noção de propriedade, não somente por não querer que outro homem a tenha, mas porque ela é o objeto de seus quadros.
Essa postura fica evidente quando, retornando para casa tarde da noite, o pintor encontra Tehura no escuro, tremendo de medo. Sem fósforos, ela não pode acender as velas e, assim, garantir que os espíritos não entrassem na cabana. Diante da cena, ele ignora o sentimento da sua companheira e começa a fazer um esboço, exigindo que ela ficasse imóvel. É deste momento insensível que nasce a inspiração para Manao tupapu (Espírito dos Mortos em Vigília, em tradução livre), uma das grandes obras da sua carreira.
Nesse sentido, Vincent Cassel transita entre o charme e o egoísmo do personagem, sem muito esforço, e constrói um personagem fascinante. Tuheï Adams, por sua vez, trabalha bem o estereótipo da “mulher selvagem”, isto é, um misto de inocência e sensualidade. Mas, no fundo, ela acaba sendo uma escolha segura, tendo em vista que se especula que, na vida real, a personagem teria apenas 13 anos na época do casamento.
Assim, o longa se prova um mergulho interessante nesta fase criativa do pintor, sobretudo por fugir dos moldes tradicionais de uma cinebiografia. Aqui, Gauguin é tão vilão quanto herói.
Ano: 2017
País: França
Duração: 101 min
Direção: Edouard Deluc
Roteiro: Edouard Deluc
Elenco: Vincent Cassel