Com sete décadas de história na cultura pop, Godzilla já foi de tudo um pouco no cinema. Do kaiju que pisoteia de tempos em tempos algumas cidades do Japão ao protetor do planeta que divide os holofotes do Monsterverse com King Kong, o colosso radioativo é a figura que melhor representa os filmes de monstros gigantes enquanto emblema das ameaças que nos assombram na era nuclear.
Dada essa longevidade, é de se surpreender quando um projeto como Godzilla Minus One faz da simplicidade o seu maior trunfo. Pensado para celebrar o aniversário de 70 anos de Gojira, o primeiro filme da franquia japonesa em sete anos tem também a responsabilidade de assumir o bastão depois que Shin Godzilla não apenas oxigenou brilhantemente a série no Japão como ofereceu ao cineasta Hideaki Anno o impulso para revisitar outros clássicos do tokusatsu desde então (como em Shin Kamen Rider, que chegou ao Prime Video neste ano).
Em Minus One, toda a megalomania expositiva vista no cinema americano é substituída por uma história encerrada em si mesma, que faz de Godzilla apenas o pretexto da ação. Situado nos primeiros anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o filme segue Koichi Shikishima (Ryunosuke Kamiki), um piloto kamikaze do exército japonês que desertou da sua missão suicida e desde então vive assombrado pela culpa. O monstro gigante se oferece no filme como a oportunidade de Shikishima encarar sua vergonha de guerra.
Trata-se, portanto, de uma história que vai no nervo do orgulho nacional e da expiação da experiência da guerra, que há 70 anos haviam gerado justamente o Godzilla original, de 1954, ainda sob o impacto das bombas atômicas explodidas pelos EUA no Japão. A rápida introdução do monstro logo nos minutos iniciais do longa parece apenas um lembrete do diretor Takashi Yamazaki ao público para mostrar que, sim, Minus One é um filme de Godzilla. O foco, porém, se volta depois para os horrores dos efeitos da guerra em Tóquio, quando Shikishima retorna para o lar e descobre que o que restou de sua casa e seus pais são apenas memórias.
Se Godzilla surgiu como um símbolo do flagelo atômico de uma forma quase literal em 1954, Yamazaki recupera esse olhar nesta oportunidade do aniversário. O forte do seu filme é a forma como o CGI e o jogo de escalas entre o monstro gigante a população apavorada consegue refazer uma noção de gigantismo da destruição atômica. Que Koichi Shikishima permaneça sobrevivente e testemunha em primeira pessoa da devastação é o que torna seu martírio pessoal ainda mais potente do ponto de vista dramático. Essa é a simplicidade que o filme almeja e alcança.
Enquanto no Monsterverse da versão hollywoodiana de Godzilla a maioria dos personagens parece estar ali apenas para explicar origens e intenções dos monstros, e para servir de referência na escala desproporcional da ação, o longa japonês os coloca no centro de uma reflexão sobre a tradição e os próprios costumes de toda uma sociedade. Ao optar pela narrativa de um drama de guerra, Yamazaki devolve a Godzilla o impacto da sua passagem. Depois de muitos anos e muitos filmes de duelos de colossos, a volta ao essencial é uma boa maneira de renovar os interesses não apenas pelo monstro - que ademais surge no filme apenas em momentos de catarse pontual - mas também pelo que ele representa.
Ano: 2023
País: Japão
Direção: Takashi Yamazaki
Roteiro: Takashi Yamazaki
Elenco: Ryunosuke Kamiki, Minami Hamabe