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Durval Discos | Crítica

Mas como todo vinil tem duas faces, o filme também surpreende ao mostrar o seu lado B

27.03.2003, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H13

A diferença entre um vinil e um compact-disc? Além de vasta vida útil, de capa e encartes enormes, o velho bolachão possui a vantagem de ser racionalmente dividido em duas partes, coisa que os CDs não têm, a elucidativa separação dos lados A e B. No primeiro ficam os hits potenciais, comerciais, no segundo as canções mais obscuras - alegria dos fãs - dificilmente incluídas em coleções "best-of".

Assim se explica, diante de um cliente, o simpático Durval (Ary França), o cabeludo dono de uma loja de LPs que dá nome a Durval Discos (2002), filme de estréia da diretora e roteirista Anna Muylaert. Paulistana, formada em cinema pela USP, famosa pela colaboração em seriados infantis como Mundo da Lua e Castelo Rá Tim Bum, Anna presta a sua homenagem aos saudosistas, sebos e aficionados musicais. Tudo isso com rara desenvoltura e, mais ainda, com um carinho transparente.

A sua inventividade aparece logo nos créditos de abertura: com um plano-sequência que vai e vem pela Rua Teodoro Sampaio (um dos redutos musicais de São Paulo), a câmera exibe os nomes do elenco e da equipe técnica impressos em máquinas de pinball, camisas de futebol, cardápios de boteco, lambe-lambes de poste...

... E estaciona em frente a um sobrado, onde a história começa. Ali, o solteirão Durval, personificação do Peter Pan que estacionou nos anos 70, vive com a mãe, Carmita (Etty Fraser), e administra a loja, cujas pérolas da MPB fazem da seleção musical a primeira das qualidades do filme. Mas, apesar da melodia, as coisas não andam bem no sobrado. Quando Carmita já não cozinha mais a sua carne com cenoura e diz que perdeu a receita daquele doce fantástico, Durval decide contratar uma empregada para conservar a saúde da mãe, uma senhora que, afinal, já não é mais uma mocinha. Surgem então Célia (Letícia Sabatella), a nova empregada, e sua suposta filha, Kiki (Isabela Guasco).

Até esse ponto, Durval Discos prende o espectador pelas atuações encantadoras e, principalmente, pelo respeito com que Anna trata figuras tão marcantes - passíveis até, na mão de um roteirista desqualificado, de um retrato maldoso, caricatural. Seguisse tal passo até o fim, seria mais uma comédia de costumes, uma simpática crônica sobre pessoas paradas no tempo e presas no espaço. Enfim, um Alta Fidelidade (High fidelity, de Stephen Frears, 2000) passado em Pinheiros.

Mas como todo vinil tem duas faces, o filme também surpreende ao mostrar o seu lado B, tão inquieto e instigante quanto qualquer lado B que se preze. Explicar mais seria covardia. Basta dizer que a segunda metade de Durval Discos tem um toque de Psicose (Psycho, de Alfred Hitchcock, 1960), com pitadas de non-sense, humor negro e uma certa brutalidade. A trilha sonora, a cargo de André Abujamra, agora alia Tim Maia e Jorge Ben com um incômodo compasso nervoso.

A virada pode desagradar a audiência acostumada com comédias-família, mas, vista com sensibilidade, configura mais um ponto a favor da produção (não seria, afinal, graças ao lado A que Durval Discos sairia coroado da concorrida disputa do Festival de Gramado 2002 com sete prêmios). Ao fim da sessão, mesmo com a melancolia das cenas derradeiras, fica a certeza de que o filme não celebra somente os colecionadores de discos, mas todos aqueles que cultivam alguma fantasia numa cidade impessoal e violenta como São Paulo.

Repare. Tudo aquilo que aparece na tela, em determinado momento, não é uma sandice descabida e gratuita. É uma realidade típíca da metrópole. Poderia muito bem estar na capa do finado Notícias Populares, por exemplo. Essa é a mensagem, então: na cidade de concreto, o afeto convive com a barbárie, e pode sobreviver a ela.

Nota do Crítico
Ótimo
Durval Discos
Durval Discos
Durval Discos
Durval Discos

Ano: 2002

País: Brasil

Classificação: LIVRE

Duração: 96 min

Direção: Anna Muylaert

Roteiro: Anna Muylaert

Elenco: Ary França, Etty Fraser, Isabela Guasco, Marisa Orth, Letícia Sabatella, Rita Lee, André Abujamra, Theo Werneck

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