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Antes de O Silêncio dos inocentes (The Silence of the lambs, de Jonathan Demme, 1991), a personalidade da maioria dos serial killers se resumia ao grau de excentricidade dos seus crimes. Era o tempo de bonecos inanimados como Jason e Michael Myers. Mas depois que Clarice Starling precisou até se associar com o Mal em pessoa, o ex-psiquiatra e canibal praticante Hannibal Lecter, para entender a mente do assassino Buffalo Bill, o gênero não foi mais o mesmo.
Acontece que esse trunfo - incensado durante toda a década de 90, transformando o filme num modelo para todo tipo de thriller psicológico - tende a encobrir um outro grande atributo do roteiro, a sua estrutura engenhosa. Nele, a investigação serve mais como pano-de-fundo do que como tema principal. O que interessa ali, de verdade, é ver como Clarice interage com o canibal. Saber que fim leva Buffalo Bill é menos importante que conferir o destino de Dr. Lecter.
Nos melhores momentos do seu Em carne viva (In the cut , 2003), a diretora Jane Campion segue à risca esse ensinamento de Demme. Homicidas desequilibrados existem aos montes, mas boas histórias de medo, entrega e aprendizado são raríssimas.
Receita mágica
Baseado no livro de mistério homônimo de Susanna Moore, o filme retrata sutilmente a vida de Frannie (Meg Ryan), uma professora nova-iorquina, trintona solteira. Enquanto a sua meia-irmã Pauline (Jennifer Jason Leigh) faz do sexo casual uma razão de viver, Frannie ainda procura um meio termo entre a ninfomania de Pauline e o utópico amor perfeito. Urgente, mesmo, só a sua necessidade de extravasar desejos reprimidos.
A situação passa da teoria à perigosa prática quando Frannie presencia uma felação nos subterrâneos de um bar. Ela não vê o rosto do homem, mas marca na memória as longas unhas azuis da mulher. Mais tarde, bate à porta de Frannie o detetive Giovanni Malloy (Mark Ruffalo): uma moça das unhas azuis foi morta em frente ao apartamento da professora. Com os dias, o perfil daquele assassinato se repete com outras vítimas. Mas o foco da trama já é outro. Frannie encontrou em Malloy um homem capaz de saciá-la.
A analogia à relação limítrofe do filme de 1991 se concretiza quando Malloy passa a ser, ao mesmo tempo, um amante exemplar e um forte suspeito das mortes. Frannie o teme, mas não se afasta. A partir daí, o perigo de um assassino à espreita é um mero detalhe para uma mulher que achou no semi-sadismo a sua receita mágica.
Absurdamente crível
Duas qualidades reconhecidas de Jane Campion - diretora do O Piano (1993) que deu o Oscar de coadjuvante à Anna Paquin de treze anos - afloram aqui: o tratamento delicado de temas femininos e a ótima direção de atores. Ela trata os personagens com um carinho quase maternal, faz surgir o talento ainda incipiente de Ruffalo e dá o acabamento ideal à atuação de Meg Ryan.
Aliás, dizer que Em carne viva serve apenas para desmistificar e desnudar a "namoradinha da América" é reduzir o filme a uma questão menor. Bastam alguns minutos para que toda essa polêmica midiática se dissolva em meio à tensão absorvente do suspense. Meg oferece uma atuação absurdamente crível - coisa quase impossível quando a mitologia de um ator se impõe sobre a imagem do personagem. Desaparece a atriz e resta apenas a Frannie que, nos momentos mais agudos de introspecção e desespero, transmite legitimamente o seu incômodo para o espectador.
Se o resultado não é perfeito, isso se deve aos clichês do gênero que Jane não consegue contornar: suspeitos múltiplos, óbvias provas do crime, perseguições, desmascaramentos finais, assassino caricatural. E não é por falta de tentativa - os seus vertiginosos movimentos de câmera visam fornecer pistas falsas ao espectador e, assim, desviá-lo da investigação real. Uma pena, pois Em carne viva, com o seu sensível retrato de um amor periclitante, não mereceria figurar na vala comum dos thrillers psicológicos.
Ano: 2003
País: EUA
Classificação: 18 anos
Duração: 119 min
Direção: Jane Campion
Roteiro: Jane Campion
Elenco: Meg Ryan, Mark Ruffalo, Jennifer Jason Leigh