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A seqüência que abre Intervenção divina (Yadon ilaheyya , 2002) já nasce antológica: um papai-noel arrasado, esfarrapado, foge morro acima de um bando de moleques em Jerusalém, alivia o peso do seu saco de presentes à medida que se desespera, até que acaba encurralado e esfaqueado até a morte.
É apenas o primeiro de vários esquetes que compõem um mosaico ora crítico, ora hilário, ora surreal, mas já deixa claro a que veio o diretor palestino Elia Suleiman. Inspirado no humor cerebral de Jacques Tati (1909-1982), ele usa as mesmas ferramentas do mestre francês: narrativa dividida em pequenos episódios independentes, humor visual quase sem diálogos, sátira ao cotidiano urbano construída de forma lenta, sem pressa, avessa ao monopólio da edição desenfreada .
A diferença é que Suleiman aborda um tema explosivo, o centenário conflito entre judeus e muçulmanos na região da Palestina. Trata-se também de um tema autobiográfico, uma vez que Suleiman teve o azar de nascer árabe na Jerusalém tomada pelos israelenses.
Se a distribuidora Pandora perdeu a chance de lançar o filme em 2002, quando Intervenção divina ganhou o Prêmio do Júri e da Crítica em Cannes e foi exibido na Mostra Internacional em SP, agora aproveita um momento dramático do conflito real na região. Por ter sido cometido pelas autoridades de Israel, o assassinato do xeque Ahmed Yassin (líder espiritual do grupo militante Hamas) afastou, mais do que nunca, a chance de uma eventual paz.
Mas não interessa a Suleiman exibir emboscadas no alto escalão, atentados suicidas ou manifestações populares. Ele trabalha com metáforas e simbolismos para demonstrar o absurdo da situação: homens que se odeiam dividindo a mesma vizinhança. O próprio diretor interpreta o personagem principal, E.S., habitante de Jerusalém que namora uma linda mulher de Ramallah. O problema é que ele tem passe livre pelo posto militar israelense, ela não. Assim, o casal passa boa parte do filme de mãos dadas, em silêncio, dentro de um carro estacionado ao lado do posto.
Pode parecer monótono - de fato, Intervenção divina exige do espectador uma postura ativa e pensante -, mas se revela embasbacante pelas soluções visuais. Cativante até.
O namoro é intercalado pelas demais esquetes. Um homem aguarda um ônibus que não vem. Outro, engraçadíssimo, guarda garrafas vazias sobre o telhado para atirar na polícia. Há ainda outro que despeja lixo no jardim do vizinho. E aquele que vive importunado todas as noites por arruaceiros motorizados.
Adicione à fórmula a irresistível consciência pop de Suleiman. Primeiro, ele coloca uma ninja uniformizada com o lenço islâmico e um escudo no formato da Faixa de Gaza num frenético duelo, à la Matrix , contra um imponente helicóptero do exército israelense. Depois, numa passagem tensa, igualmente memorável, E.S. pára no semáforo ao lado de um motorista israelense, ameaça iniciar o racha. Tudo ao som de "I Put a Spell on You", clássico de Screamin Jay Hawkins.
Daria para ficar mais uns bons dois parágrafos enumerando as seqüências. Tem ainda a mecânica irritante dos post-its, a emblemática bexiga-Arafat, a óbvia (e já ultrapassada) panela-de-pressão prestes a explodir... Mas vamos parar aqui. Melhor é conferir o filme, uma experiência difícil, mas singular.