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Deve ser extraordinário sentar ao lado de um mestre dos pincéis e assisti-lo enquadrar o modelo, misturar as tintas, escolher a luz, aplicar as camadas de cores, preencher a tela devagar... Imagine conferir o que se passa na cabeça de um Edvard Munch quando O Grito ganha vida... E quem nunca desejou saber por que Mona Lisa dava aquele sorriso safado? Pois se há algum deleite em conferir o filme Moça com brinco de pérola (Girl with a pearl earring, 2003), ele está justamente no ato da pintura.
Peter Webber, diretor de filmes para a TV em sua primeira incursão nos cinemas, pretende recriar o contexto em que Johannes Jan Vermeer (1632-1675) pintou a tela que dá nome ao filme, provavelmente o mais famoso dos seus trinta e poucos trabalhos. Para tanto, Webber se baseia no romance homônimo que a norte-americana Tracy Chevalier escreveu em 1998.
Nele, Vermeer (aqui vivido pelo galã Colin Firth) sofre como a galinha-dos-ovos-de-ouro de uma família opulenta e cada vez mais numerosa. Sua mulher não cessa de parir - motivo pelo qual a sogra insiste nos agrados ao rude mecenas Pieter Van Ruijven (Tom Wilkinson). Vermeer pinta o que o seu patrocinador pede. Quando teima em criações próprias, que duram meses de labuta, amotinam-se as mulheres. A chegada de uma nova criada, a pobre e bela Griet (Scarlett Johansson), não geraria, então, nenhuma mudança no ambiente. Mas eis que as tarefas domésticas a levam ao estúdio do pintor - e os embates na casa se agravam.
De fato, o holandês Vermeer tinha pouco apego mercantil às suas obras - apesar dos mais de dez filhos que tivera na realidade. Isso fez com que o verdadeiro valor de seu trabalho fosse reconhecido tardiamente, já no século XIX. Mas seria improdutivo procurar outras veracidades históricas dentro do relato abertamente ficcional de Tracy. Assim, vamos a uma análise formalista do filme.
Gata borralheira
As três indicações ao Oscar evidenciam as qualidades da película. O figurino, a direção de arte e a fotografia são realmente soberbos. O fotógrafo português Eduardo Serra sabe como iluminar as cenas passadas no estúdio de modo a ressaltar aquela que é a grande virtude de Vermeer: capturar cenas cotidianas em ambientes fechados sem empobrecer o uso da perspectiva, ressaltando o tratamento sutil das várias tonalidades da luz do dia.
Mas há um problema na ficção. Tracy Chevalier constrói a trajetória de Griet - e o roteiro de Olivia Hetreed a avaliza - com base em todo tipo de vício de histórias de gata borralheira. Filha única de uma família humilde, a menina arruma trabalho justamente numa casa de família tão abastada quanto grosseira. Como Cinderela, sofre nas mãos de megeras autoritárias, de jovens invejosas e encontra compreensão apenas na figura masculina do príncipe sensível. Ali, todos comem, andam, dormem e agem com modos medievais, menos a delicada criada. Só faltou a fada madrinha.
Essa opção pela fábula seria compreensível se Moça não se levasse tão a sério. Como o filme se imagina uma nobre reconstituição de época, as caricaturas tendem a ser mais risíveis: o sério Tom Wilkinson não se identifica atrás do bigode desgrenhado do mecenas, a sogra vivida por Judy Parfitt é digna das piores bruxas e o manjado Colin Firth não convence como artista atormentado. Até a filha bisbilhoteira e malcriada de Vermeer parece um Corujito atocaiado, escorada em cada canto da casa, como a câmera faz questão de reiterar a cada momento, até o limite do clichê.
Com uma certa boa vontade, dá pra dizer que esses deslizes, assim como a impessoalidade do drama e a burocracia da direção, não contaminam o prazer de ver o quadro nascer. As silenciosas trocas de aprendizados entre Vermeer e Griet são preciosas. Scarlett observa os materiais, as tintas, as cores, com o mesmo olhar pueril com que descobre a Tóquio de Encontros e desencontros (Lost in translation, de Sofia Coppola, 2003). Posa para o quadro com a mesma expressão fragilizada que a torna tão covardemente encantadora. Aliás, justiça seja feita: não fosse o carinho com que a câmera contempla os lábios inigualáveis de Scarlett, Moça ficaria às margens do desqualificável.
Ano: 2003
País: Inglaterra/Luxembrugo
Classificação: 12 anos
Duração: 100 min
Direção: Peter Webber
Elenco: Scarlett Johansson, Colin Firth, Tom Wilkinson