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Quatro soldados israelenses, incumbidos de uma missão de resgate, tentam carregar um homem ferido. Mas, presos até os joelhos num charco de lama, não conseguem se mover. Durante cerca de cinco minutos, a câmera não sai do lugar, assim como os soldados. O único som ouvido vem das bombas e dos tanques que cruzam o fundo da paisagem.
Essa é a seqüência mais angustiante e simbólica de O Dia do Perdão (Kippur, 2000), um filme forrado de cenas angustiantes e simbólicas.
De arquiteto a cineasta
O cineasta Amos Gitai, israelense nascido em 1950, é tarimbado. Já dirigiu mais de trinta longas, dos quais Kadosh - Laços Sagrados (Kadosh, 1999) é o mais bem-sucedido internacionalmente, e o mais conhecido por aqui. Gitai normalmente aborda de maneira imparcial os costumes religiosos e sociais do judaísmo, mas nunca promoveu um mergulho tão profundo na sua própria história quanto agora, em O Dia do Perdão.
No dia 6 de outubro de 1973, o país comemorava o Yom Kippur, "Dia do Perdão", o seu mais importante feriado religioso, que acontece na semana posterior ao ano novo judaico. A rotina nacional foi abalada com a notícia de que tropas vindas da Síria e do Egito invadiam território israelense. Reservista do exército, Gitai foi convocado a lutar na batalha, como parte da equipe de socorro. Nunca esqueceu as imagens da guerra, que vitimou em seis dias cerca de 11 mil israelenses, 18 mil egípcios e 10 mil sírios.
O episódio marcou a rixa entre judeus e árabes de tal maneira que Moshé Dayan (1915-1981), primeiro-ministro israelense na época, decidiu acelerar as negociações de paz. Antes um adolescente desocupado, Gitai queria seguir a carreira do pai, ser arquiteto. Saiu do conflito decidido a se dedicar ao cinema.
Realidade da guerra
Na época, a escolha pela arte foi ideológica e isso se reflete no filme, cujo rascunho já estava escrito desde o final dos anos 80. Apesar de ser um relato autobiográfico - Liron Levo interpreta o alter-ego do diretor, o jovem sargento Weinraub (sobrenome de nascença de Gitai) - O Dia do Perdão não adota julgamentos ou patriotismos. Em nenhum momento os invasores são mostrados. Da mesma forma, não há israelenses franco-atiradores, heróicos. Surgem apenas os feridos, os mortos e aqueles que se esforçam para salvá-los.
Das duas horas de projeção, cerca de cem minutos são ocupados por combatentes baleados, queimados dentro de tanques, carregados em helicópteros de resgate. Coisa que pode desagradar o público - pessoas deixavam a projeção em plena sessão de imprensa! - mas que corresponde à realidade de um conflito bélico. Existe a máxima de que a primeira vítima de uma guerra é a verdade. Bush, CNN e cia., durante a exaltação dos seus Rambos no Iraque, demonstraram o ditado. A imprensa não conhece o número de mortos, mas sabe, de cor, a tonelagem de um B-52 ou o impacto de um Tomahawk.
Voltando ao filme... Não se deve, de todo modo, considerar O Dia do Perdão um documentário. Gitai não seria um cineasta formidável se não soubesse imprimir significado em cada uma das imagens que retrata. Com a paciência dos verdadeiros narradores, corta de uma seqüência à outra apenas quando a sua mensagem foi assimilada. Dá espaço para a interpretação e, principalmente, para a reflexão do espectador.
O título do filme - e da guerra - não poderia ser mais apropriado. Gitai deseja que todos os envolvidos sejam contemplados com o perdão. E que o seu povo deixe de chafurdar eternamente no charco dos conflitos religiosos.
Ps: E as cenas sensuais são, sem exagero, inesquecíveis. Como assim, cenas sensuais??? Exato, caro leitor... cenas sensuais, extremamente emotivas e poéticas. Explicar mais seria covardia, mas o comentário é inevitável. Cabe apenas uma explicação a respeito das tintas sobre o lençol: branco e azul são as cores da bandeira israelense; vermelho, verde, preto e branco, da nação árabe.