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O cinema italiano nos faz lembrar de grandes nomes que já estiveram por trás das câmeras. Muito do que se vê hoje se deve a este legado dos mestres do passado, que conseguiam extrair com maestria, na ironia e no choro, o encanto e a beleza das relações humanas, mesmo em ambientes inóspitos e contextos familiares complicados. Com essa abundância de referências cria-se a expectativa, muitas vezes frustrada, de se encontrar um novo Fellini ou Rossellini. Até que há aqui e ali bons seguidores mas, de um modo geral, a herança genética acaba sendo diluída por forças de mercado contrárias a este tipo de expressão, ou mesmo falta de talento pura e simples. Toda a massa fílmica a que temos acesso no Brasil faz com que a média da cinematografia da terra da macarronada seja razoavelmente medíocre. Um Coração para Sonhar (Il Cuore Altrove, 2003), filme com direção e roteiro do ilustre desconhecido Pupi Avati, não foge a essa regra, engrossando o caldo das películas que logo caem no profundo ostracismo.
O filme se passa no começo do Século XX e centra-se no personagem Nello (Néri Marcoré), de 35 anos. Ele é um tímido professor de línguas, inexperiente por ter vivido boa parte da juventude na barra da saia de sua família. Ao que tudo indica, é virgem ainda. Seu pai, Cesare (Giancarlo Giannini), um mulherengo de Roma, é um conhecido alfaiate que trabalha para a alta sociedade e faz também as vestimentas do Papa. Cesare quer um herdeiro para o sagrado ofício de vestir a sua Santidade, portanto, manda seu filho a Bolonha para encontrar uma esposa. Chegando lá, Nello começa a dar aulas em uma escola e passa a viver na pensão de Arabella (Sandra Milo), onde divide um quarto com o barbeiro Domenico (Nino DAngelo), que também o incentiva a ser dar bem com o sexo oposto. Nada se concretiza de fato, até que um dia, em uma visita a uma casa para moças cegas, Nello conhece Angela (Vanessa Incontrada) e logo se apaixona por ela. O único porém é que ela é considerada liberal demais para os padrões da nobre casta bolonhesa, e junta-se a Nello apenas para fazer cenas de ciúme ao seu antigo namorado, por quem ainda nutre uma relação ambígua de amor e ódio.
Um Coração para Sonhar até que tem um vigor dramático em suas intenções. Nas entrelinhas, emerge uma série de boas idéias. O paralelo entre as cidades de Roma e Bolonha é uma forma de externar o confronto entre a sociedade antiga e a moderna. Toda a importância dada à indumentária, às vestimentas de luxo, como forma de fazer transparecer a posição social, é exemplo disso. E a Igreja Católica colocada como símbolo máximo dessa valorização do externo vem bem a calhar. É como se houvesse a pregação de que a essência some diante da aparência. Já em Bolonha ocorre o mesmo, nos jantares, nas reuniões sociais. Mas é na escola, na pensão e em núcleos menores e mais periféricos que se nota uma certa rebelião frente a essa estética dogmática.
O papel de Nello também não chega a ser arquetipicamente simplório. Existe uma certa complexidade de caráter que o enriquece. Ele canta alto demais nos corais de igreja e fala baixo demais na sala de aula. Ensina jovens alunos o supra-sumo da literatura clássica, mas ainda é um aprendiz perante a rígida faculdade da vida. Tem uma certa posição de destaque na escola, é reconhecido e elogiado pelo corpo docente e discente, entretanto não deixa de levar uma vida mauricinha, vivendo ainda às custas das mesadas do pai. Seu semblante apagado, seu aspecto contido, suas ações e reações controladas, contribuem para essa construção mais dialética de personagem. Nello não explode de raiva, tampouco chora suas angústias. Mas isso não quer dizer que o protagonista seja inexpressivo. É nítida a sua conivência com as armações de Angela. O fato de ele engolir seco o amar e não se entregar ao amor que ela joga, não deixa de ser uma desvirginização da vida, ainda que em seu tênue masoquismo.
Nello é o tempo todo alimentado e destruído por sua auto-estima. Os alunos o admiram (seu papel é quase o de Robin Williams em Sociedade dos Poetas Mortos, sem aquelas afetações). A elite o despreza. Angela o ignora. Nello reza à Santa Luzia não para que Angela se cure da cegueira, mas sim para que ela continue nesse estado permanente de ablepsia para nunca poder enxergá-lo do jeito que é. Mais uma vez, a repulsa aos sentimentos interiores é metaforizada pela aparência. O uso irônico da religiosidade serve de mecanismo propulsor e determinista para deixar as coisas exatamente em seus lugares. Em vez de se buscar a salvação, apela-se para a condenação.
Apesar da riqueza de idéias, o filme peca por seus excessos. Seu andamento é carregado por um tom melodramático demais. Sua manada de lugares-comuns enfraquece a sutileza das contradições sugeridas. A poesia como manifestação dos impulsos amorosos não convence. A trilha sonora é esquemática demais. Além de açucarada, tem o auxílio do sobe-e-desce do botão de volume quase igual aos novelões latinos. Com exceção do ator principal, a maioria dos coadjuvantes não exibe o peso dramático que seus papéis exigem. Há muitos apelos fáceis, que minguam a densidade da trama e mostram como resultado um amontoado de obviedades.
Ano: 2003
País: Itália
Classificação: 12 anos
Duração: 107 min
Direção: Pupi Avati
Roteiro: Pupi Avati
Elenco: Giancarlo Giannini, Sandra Milo