Pela ocasião dos prêmios da Academia - e principalmente pela indicação justa de Natalie Portman ao Oscar de melhor atriz - Jackie pode ser confundido com a tradicional cinebiografia solene e chapa-branca, mas o filme de Pablo Larraín não deixa de ser um registro pessoal, impregnado dos temas que o diretor já desenvolve nos seus longas de época sobre política e sociedade no Chile, como No e o recente Neruda.
O principal desses temas é a noção de que, no século das imagens e na sociedade do espetáculo, aquilo que entendemos como verdade depende menos de um embate dialético do que de narrativas de convencimento. Sem dúvida é uma questão das mais atuais nos EUA, e Larraín (que sempre voltou ao governo Pinochet para tratar da contemporaneidade desses temas) repassa os dias do assassinato de JFK para problematizá-la hoje.
Em resumo, Natalie Portman dá corpo a uma Jackie Kennedy que, absorvida e imobilizada pelo luto, descobre (talvez conscientemente, dada a forma como o filme a apresenta como uma primeira-dama articulada, embora delicada) que tanto seu futuro quanto o presente do assassinato de Kennedy serão definidos pela imagem política que ela criar publicamente para si mesma. No melhor estilo dos roteiros autoconscientes que fazem do subtexto, texto, Jackie fala que realeza é uma questão de tradição e tempo, e o que ela faz para se eternizar como primeira-dama, como parte dessa realeza, é reivindicar para si o tempo que tem de assimilar o luto.
Interessantemente, Jackie então se torna um filme mais emocional - ao associar o processo do luto com uma autodescoberta política - do que os longas anteriores de Larraín, marcados acima de tudo por uma soberba estilística que se colocava acima da dramaturgia (como o o visual oitentista de No ou o discurso metalinguístico de Neruda). Embora Jackie seja meio irritante quando martela seus insights de texto à exaustão (a menção insistente ao conto de fadas de Camelot), Larraín consegue fazer aqui o drama menos afetado de sua carreira.
Muito disso se deve à convicção de que, emoldurada pelo jogo de janelas e enquandramentos do diretor, a imagem de Portman basta ao filme. Se tudo começa claustrofóbico, com Jackie centralizada em close-ups abafados, e Portman surge estranha com sotaque e cadência de voz muito carregados, aos poucos a atriz domina seu espaço, seu tempo e passa a ditar o ritmo. É um trabalho de caracterização muito forte, porque mesmo que o filme não mude tanto assim a forma de enxergar Jackie - sempre colocada à prova de close-ups longos e planos centralizados - de repente a personagem se torna mesmo protagonista de sua própria história.
A grande questão do filme é se Jackie de fato se torna uma imagem emancipada, uma imagem que a permita superar o trauma de assistir, sem possibilidade de reação, à morte violenta do marido - um trauma de inconsciente coletivo que traz de Dallas como cicatriz a imagem mais vista e repetida da história dos EUA no século 20. Essa relação da exaustão da imagem do tiro contra Kennedy agora contraposto com a urgência com que Jackie constrói um imaginário para si, relação essa que obviamente não passa em branco para Larraín, é um dos elementos que tornam Jackie um filme tão interessante, independente da forma como o diretor a formula.
Ano: 2016
País: EUA
Classificação: 14 anos
Duração: 99 min
Direção: Pablo Larraín
Roteiro: Noah Oppenheim
Elenco: Natalie Portman, Peter Sarsgaard, Greta Gerwig, Billy Crudup, John Hurt