Uma das características mais interessantes das comédias dramáticas de David O. Russell é o seu flerte constante com os exageros do melodrama. Se O Vencedor e Trapaça recorrem a estereótipos melodramáticos da família americana e do self-made man para tratar do sonho americano, é porque O. Russell entende que o próprio conceito do american way é um delírio, uma construção ficcional. A graça dos seus filmes é que eles buscam uma verdade nessa ilusão.
Talvez por conta das atuações exageradas que esse tipo de proposta exige, os filmes do cineasta têm encontrado respaldo seguidamente no Oscar, e com Joy: O Nome do Sucesso não é diferente: Jennifer Lawrence consegue sua quarta indicação a melhor atriz (três delas por filmes de O. Russell, uma delas vitoriosa, em O Lado Bom da Vida) no papel de uma jovem mãe divorciada, Joy, que se torna um fenômeno de teleshopping depois de inventar um esfregão que se torce sozinho.
Do retrato hiperbólico da vida desgraçada de classe média (casa aos pedaços, parentes por todo canto) às reviravoltas trágicas, Joy é o típico filme de O. Russell que testa os limites da representação, e por isso o público costuma se dividir diante do seu trabalho. Do diretor, em outras palavras, nunca esperaríamos o típíco filme de Oscar, "de prestígio", que se ocupa de grandes temas e não ofende ninguém. Ainda assim, Joy visivelmente se leva mais a sério do que um O. Russell padrão: é menos um melodrama familiar assumido, como O Vencedor, e mais um comentário sobre esse gênero, com direito um arsenal de referências inteligentonas de metalinguagem.
Isso fica claro já no primeiro plano, uma reencenação de uma telenovela (daquelas em que a protagonista é tratada como donzela acuada o tempo todo) que se espelhará na vida de Joy. Se os outros filmes do diretor buscavam uma verdade no estereótipo, este cava um pouco mais fundo e busca uma verdade no artificialismo das telenovelas: da preocupação com os cômodos da casa como microcosmos (o quarto da mãe, o porão do ex-marido) à obrigação da familia estar sempre toda junta (que a câmera do diretor aproveita para fins de comédia, sempre revelando pessoas nos cantos das salas). É a casa de bonecas - outro elemento central da caracterização de Joy - carregada pra vida.
Do momento em que a heroína conhece seu futuro marido (o flashback do namoro basicamente se dá todo em cima de um palco) até a realização profissional diante das câmeras no infomercial do Magic Mop, tudo aponta para a representação: é como se Joy se realizasse não como mãe ou empresária, mas apenas como estrela de sua própria ficção. Toda essa estratégia cheia de disclaimers de metalinguagem em que O. Russell envolve seu filme ecoa as crenças que já marcavam seu cinema - a do sonho americano como uma grande e perpétua vitrine feliz de Natal a ser questionada - mas o que perdura depois de uma sessão de Joy é a sensação de que o diretor criou uma camisa de força para si.
Porque cada geração tem o melodrama que merece. Fassbinder e Almodóvar bebiam na fonte de Douglas Sirk, o grande cineasta dos melodramas americanos dos anos 1950. Russell tem as telenovelas popularizadas nos anos 1960 e 1970, com seus choros forçados e as adversidades fabricadas para testar pobres heroínas. Embora cite David O. Selznick, nome forte da época em que Hollywood fazia dramas maiores que a vida, Joy se diminui ao emular o espaço restritivo da TV.
Se O. Russell soube recentemente se apropriar desse tema tão recorrente no cinema independente americano, que é o drama de familia disfuncional, e moldá-lo à sua maneira, Joy empata na brincadeira da casa de boneca. É um filme cheio de ludismos que joga com o lado mais cafona do american way mas nunca consegue se libertar de fato das condições que propõe, ou mesmo criar um desfecho à altura de uma premissa tão eloquente. É como um truque de escapismo cheio de correntes e cadeados que dá fatalmente errado no fim.
Ano: 2015
País: EUA
Classificação: LIVRE
Duração: 0 min
Direção: David O. Russell
Elenco: Jennifer Lawrence, Bradley Cooper, Robert De Niro, Édgar Ramírez, Elisabeth Röhm, Virginia Madsen, Dascha Polanco, Isabella Rossellini, Diane Ladd, Jimmy Jean-Louis, Drena De Niro, Madison Wolfe, John Enos III, Erica McDermott, Bradley Cooper, Robert De Niro, Virginia Madsen, Isabella Rossellini, Diane Ladd, John Enos III, Donna Mills, Allie Marshall, Kristen Annese, Chaunty Spillane, Isabella Cramp, Ariana DeFusco, Susan Garibotto, Susan Lucci, Laura Wright, Melissa Rivers