Cena da Liga da Justiça de Zack Snyder

Créditos da imagem: Divulgação

Filmes

Crítica

Liga da Justiça de Zack Snyder convida a experimentar o tédio dos deuses

Versão do diretor consagra a mitologia dos super-heróis baseada no paternalismo

Omelete
4 min de leitura
15.03.2021, às 14H00.
Atualizada em 28.02.2024, ÀS 00H48

Das mudanças que o público poderá assistir na versão de Zack Snyder de Liga da Justiça, uma das principais é o arco de Ciborgue (Ray Fisher). No filme lançado em 2017, a subtrama envolvendo Vic Stone, seu pai Sylas e os cientistas do S.T.A.R. Labs foi reduzida, e o desfecho do drama entre Ciborgue e Sylas era outro, oposto ao que o Snyder Cut agora repara e apresenta.  

Snyder diz que a jornada de Ciborgue é a metáfora central que une os arcos desses personagens. A saber: Ciborgue morre, renasce desumanizado como máquina, e reencontra um propósito de ser no automatismo dessa ciberevolução. Uma das cenas mais emblemáticas do Snyder Cut é quando Ciborgue manipula bancos digitalmente para dar uma fortuna a uma mulher necessitada, cuja rotina ele observava por telas à distância. Ela não sabe que foi ajudada e Ciborgue sai escondido; as únicas pessoas na rua que o veem tratam o salvador como um Frankenstein.

Quando diz que os super-heróis modernos são a mitologia do século 20, como frisou na entrevista que deu nesta semana ao Omelete (que será publicada nesta terça, 16), Snyder demonstra - e ilustra muito bem nessa cena de apresentação do Ciborgue - que ele se espelha na mitologia greco-romana, em que os deuses governam os destinos dos mortais numa relação assimétrica de poder, que gera tédio e distanciamento nos deuses e medo e imobilismo nos mortais. Na prática, embora imbuído das melhores intenções, o mundo que Snyder vê para os super-heróis da DC é determinado pelo paternalismo.

É por isso que as relações parentais têm um papel tão reiterado em Liga da Justiça, a ponto de eclipsar os demais temas que essas quatro horas de filme poderiam vir a oferecer. Ao invés de humanizar os personagens, a orfandade de Clark (Henry Cavill), Bruce (Ben Affleck), Diana (Gal Gadot), Arthur (Jason Momoa) e Victor produz nos super-heróis um efeito inverso: eles substituem os pais ausentes, e nesse vácuo, passam a emular o comportamento dos deuses paternalistas. Não há dúvida de que é terrível a tragédia do Ciborgue, mas o que se vê no filme é essencialmente um personagem entediado com sua condição.

Ora, a partir do momento em que o tédio se torna intrínseco a esses personagens (com a exceção do Flash, cujo luto parental se encontra na fase da barganha, inscrito no seu superpoder de tentar estar em todos os lugares ao mesmo tempo), o próprio filme tem muita dificuldade de se livrar desse estado emocional. Em relação à trama de invasão alienígena, o tédio está principalmente na forma como a exposição (antes sintetizada em duas horas de filme) se alonga em cenas que não servem para impor ritmo; quantas vezes precisamos ver o pessoal do S.T.A.R. Labs trabalhando na nave de Krypton pra entender que ali é um foco da ação?

Nem o discurso do diretor escapa ao enfado. Uma vez que estabelece o status de deuses mitológicos e a filiação como temas de seu filme, Snyder passa a repetir esse enunciado de novo e de novo, como se a repetição em si criasse e resolvesse sozinha conflitos dramáticos. Falta a fagulha de tornar esse enunciado um problema dentro do roteiro, problema esse que caberia à ação resolver depois, como Snyder havia conseguido fazer ao evocar “Martha” em Batman vs Superman (que aproveita o tema da filiação e o torna um potencial de conflito, de drama). Em Liga da Justiça, essa luz só acende no epílogo, quando cabe ao Coringa (Jared Leto), claro, sempre lúcido, chamar a atenção do Batman para seu complexo parental.

Ao longo do filme, mostra-se um lugar absolutamente solitário, esse do Olimpo. Pode parecer que Liga da Justiça está traçando um grandioso estudo sobre o luto (é o que o filme nos diz sempre, repetindo ideias e imagens de sombra e morte), mas na verdade o afeto hegemônico é o da alienação. Quando Flash (Ezra Miller) tenta devolver a humanidade dos heróis em seus momentos de alívio cômico, isso se dá essencialmente pelo constrangimento. O enquadramento 4:3 isola mais ainda esses personagens, que as soluções de câmera de Snyder tendem a congelar em poses de estátuas super-heroicas. Quando tudo é cimentado e o roteiro não consegue esboçar disso um conflito, o que resta a fazer? A solução final, a destruição do Olimpo, fantasia secreta de Snyder que assombra os personagens em pesadelo até o epílogo.

É um olhar acima de tudo pessimista, e no fim das contas parece mais que sensato que a Warner Bros. tenha tentado desmontar essa visão de mundo em 2017. De qualquer forma, não dá pra dizer que o estúdio foi pego de surpresa, depois de validar o martírio cerimonial de 300 e o holocausto nuclear de Watchmen. Os super-heróis de Liga da Justiça estão mais próximos de Ozymandias do que se imagina; o personagem que Alan Moore extraiu do poema escrito por Percy Shelley em 1818 lamenta que sua criação magnífica será esquecida pelas areias do tempo. Ozymandias viveu para a sua obra, tirou disso uma satisfação narcísica, e se recolhe ao luto perene por saber que os mortais, eles se esquecerão.

Nota do Crítico
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