Lá nos anos 1980 e 1990, com a exceção de um ou outro título (A Outra Face, estou olhando para você!), Nicolas Cage não era o cara que estrelava os filmes mais fora da caixinha de Hollywood. A colocação do ator nessa posição é muito mais contemporânea, da tal Cage-ssance, do que qualquer coisa - na primeira fase áurea da carreira, ele era visto como um astro de cinema bem tradicional, escalado em blockbusters de ação desenhados para os multiplexes (A Rocha, Con Air, A Lenda do Tesouro Perdido, 60 Segundos) e até romances de apelo popular (Feitiço da Lua, Cidade dos Anjos, O Capitão Corelli). O terror mal passava pelo radar da sua filmografia, e o território do kitsch, do cinema “destinado a ser cult”,muito menos.
Por outro lado, Cage sempre foi Cage - o que significa que, neste período, ele se estabeleceu como a força descentralizadora de filmes muito centrados, até comercialmente falando. Ligação Sombria é um lembrete do quão bacana pode ser utilizá-lo neste modo, mesmo porque o suspense, a depender do diretor Yuval Adler (Os Segredos que Guardamos) e do roteirista estreante Luke Paradise, segue à risca a cartilha da construção de tensão que se espera da premissa. A saber: Cage é um estranho misterioso que entra no carro de um pai de família (Joel Kinnaman) quando ele está a caminho do hospital para ajudar a esposa em trabalho de parto, exigindo que ele dirija para longe de lá a fim de acertar uma conta pendente que, pelo menos à primeira vista, o personagem de Kinnaman não parece reconhecer.
A partir desse impulso narrativo, o script de Ligação Sombria se apoia no mistério por trás da situação, na dúvida sobre quem tem a vantagem moral dessa história (e portanto, de certa forma, quem merece a aliança do espectador), para construir um road movie de suspense modesto, mas ansiosamente eficaz. Os obstáculos colocados no caminho dos protagonistas - um policial que liga as sirenes ao notá-los acima do limite de velocidade, uma parada em um restaurante de beira de estrada iluminado em neon - não fogem do esperado, mas o jogo de gato e rato entre os dois atravessa essas situações de certa forma previsíveis mantendo o seu interesse, em parte porque o texto sabe como aumentar os riscos envolvidos nesse jogo, e em parte porque o diretor Adler é sábio o bastante para mirar sua câmera sempre nos atores, focando-se no verdadeiro gancho do mistério: a relação entre eles.
Kinnaman está aqui para reagir, mais do que agir, mas é admirável o quanto o ator sueco do títulos como House of Cards e O Esquadrão Suicida sabe usar isso ao seu favor, construindo um personagem equilibrado delicadamente entre o nervosismo e a eloquência, que mantém o espectador em cima do muro quanto à procedência das barbáries imputadas a ele pelo seu algoz. Quanto a Cage, é evidente o quanto ele de delicia em se chocar com uma estrutura totalmente despreparada para segui-lo pelo caminho da estranheza: do cabelo vermelho espetado em um quase-moicano aos monólogos de sílabas aleatoriamente esticadas, ele incute cada ação no suposto plano de vingança de seu personagem com um frenesi suado e bêbado que trai a angústia sufocante por trás dele. Ah sim, Cage está se divertindo - mas seu personagem claramente não.
Coroado com uma resolução amarga que não foge muito da simplicidade beirando o espartano pregada pelo filme como um todo, Ligação Sombria é um exercício de gênero que talvez se prove pouco flexível ou audacioso para o gosto contemporâneo. Dentro da filmografia recente de Cage, esta é menos uma extensão de seu passeio pelos filmes que “finalmente o entenderam como artista” (e, há de se dizer, como figura pop), e mais um flashback para a era em que ser “incompreendido” era justamente o combustível que o fazia uma figura tão única dentro do cinemão comercial. É interessante poder ser lembrado, no entanto, das potências diferentes que esses dois momentos representaram.
Ano: 2023
País: EUA
Duração: 90 min
Direção: Yuval Adler
Roteiro: Luke Paradise
Elenco: Nicolas Cage, Joel Kinnaman