Se há uma personalidade do século XX que viveu uma vida cinematográfica, foi Eduard Limonov. O poeta russo, embora seja um nome obscuro para aqueles fora de seu país e da bolha literária, perpassou a segunda metade do século passado como um ciclone de ideias emblemáticas de seu tempo - seja na posição confrontacionista de suas ideias políticas, no caráter egocêntrico de sua produção artística (ele mesmo admitia que só era capaz de escrever sobre si mesmo), na vida imigrante e cosmopolita que ele levou, passeando por cenários hipsters e engomadinhos de diferentes culturas com o mesmo cinismo anárquico… Limonov encarnava como ninguém a derrocada do discurso falso de comunhão do Ocidente contemporâneo, e a forma como ele se infiltrou vitorioso e maligno até nas últimas fortalezas que resistiram contra ele.
Dito isso, a vida de Limonov também foi capitular por natureza - primeiro isso, depois isso, e depois ainda aquilo, em transformações radicais cujo tecido conectivo é de pouco interesse ou pouco documentado. Impressionante, portanto, que Limonov: The Ballad, cinebiografia do poeta russo que foi exibida em competição no Festival de Cannes 2024, consiga fugir com tanto brilhantismo da armadilha protocolar do subgênero, ao invés disso extraindo do livro biográfico assinado por Emmanuel Carrère uma história centrada obstinadamente em desenhar e entender o buraco impreenchível de carência que o seu protagonista (Ben Whishaw) passou a vida tentando costurar com conflito - com polêmica e admiração, com violência e nacionalismo, com serviço e ambição, com amor e obsessão.
O grande culpado, claro, é o diretor Kirill Serebrennikov (Verão), que também divide o crédito de roteiro com Pawel Pawlikowski (Guerra Fria) e Ben Hopkins (Dentro). Nas mãos deles, Limonov: The Ballad se afasta da biopic e se aproxima do estudo de personagem, recortando e ordenando eventos notáveis da vivência do protagonista para tentar se aproximar dele, desenhar um arco de esclarecimento sobre o seu papel no mundo e na história. Testamento do sucesso dessa empreitada é que chegamos ao fim das quase 2h20 do filme tendo alguma ideia de como esse encaixe de indivíduo e tempo aconteceu, e como ele reverbera até hoje.
The Ballad decide interromper sua narrativa antes de Limonov se tornar figura ativista ultra-nacionalista na Rússia, mas não parece um ato de covardia. É como se o filme estivesse nos dizendo: “Agora que você o conhece, isso não deve lhe surpreender”. Sem contar que, a essa altura, Serebrennikov já intercalou com tanta vitalidade as referências pop pelas quais o seu protagonista se movimentou que, em uma contemporaneidade tão derivada dessas referências - e tão nostálgica delas -, apresentar o último ato político de Limonov como uma consequência lógica de tudo o que veio antes, um epílogo, lê como uma escolha de ironia fina e penetrante. Depois de lançar mão de tracking shots, quebras de quarta parede, transições de cenário ricamente planejadas e executadas à precisão, linguagem propagandística e muito mais, o que sobra ao filme… é nada.
Talvez subscrevendo um pouco à egolatria boomer do seu biografado, Limonov: The Ballad reserva ao século XXI somente um letreiro na tela, uma explicação do que já é evidente por tudo o que foi levantado e movimentado (por Limonov e por outros) nos anos que vieram antes. É caos gerado por caos, é claro, e violência gerada por violência - mas o caos e a violência de hoje são preto-no-branco, autoconscientes, irônicos, algo ressentidos. Entediantes, enfim, e de alguma forma isso só os faz piores. O filme parece postular que ao menos, no passado, (alguns de) nós tínhamos a mínima consideração de causar sofrimento com algum estilo.
Ano: 2024
País: Itália/França/Espanha
Duração: 138 min
Direção: Kirill Serebrennikov
Roteiro: Kirill Serebrennikov, Ben Hopkins, Pawel Pawlikowski
Elenco: Maria Mashkova, Ben Whishaw