Já faz quase meia década que Hollywood está tentando fazer M3gan - a diferença é que, na primeira tentativa, ela se chamava Chucky. O remake de Brinquedo Assassino foi lançado em 2019, com Mark Hamill dublando uma nova versão do boneco que aterroriza as telas de cinema (e, mais recentemente, da TV) desde o final dos anos 1980. A novidade desta refilmagem, pelo menos da forma como ela foi vendida pelo estúdio, era que o Chucky do novo Brinquedo Assassino seria um boneco tecnológico, cheio de funções mirabolantes, permitindo à franquia mexer com os medos e ansiedades de pais e crianças da geração internet.
Acontece que a franquia Chucky, como narrativa, nunca esteve muito interessada nesse tipo de coisa. Como criada e conduzida por Don Mancini, a saga do Brinquedo Assassino historicamente fala muito mais sobre indivíduos excluídos e oprimidos da sociedade, e sobre suas interações com o sistema hegemônico - vide a 2ª temporada da série, largamente ambientada em um convento. Subverter as expectativas para, subitamente, conversar com o público sobre o complexo industrial infantil e suas relações perversas com a geração “cronicamente online” dos dias atuais simplesmente não funcionou, porque havia bagagem demais ali, naquele nome e naquele personagem.
O primeiro golpe de brilhantismo de M3gan é, portanto, se posicionar como uma história original - um produto novo, na linguagem publicitária da qual o próprio filme usa e abusa. Aproveitando-se do fato de que o terror é um dos últimos gêneros nos quais Hollywood ainda ousa financiar filmes desprendidos de grandes franquias, os roteiristas Akela Cooper e James Wan (parceria estabelecida no excelente Maligno) colocam M3gan na proverbial vanguarda das histórias de medo que buscam encapsular as trepidações e dilemas de sua época, como elas costumam fazer tão bem.
E veja bem: M3gan não precisa ser terrivelmente original (o que ele não é) para firmar essa posição. Na era dos remakes, reboots, spin-offs e universos compartilhados, ele só precisa parecer novo, e isso ele faz sem muito esforço. Na trama, a pequena Cady (Violet McGraw, que foi a jovem Nell em A Maldição da Residência Hill) perde os pais em um acidente de carro, acabando por ir morar com a tia Gemma (Allison Williams), uma antipática engenheira que trabalha para uma multinacional produtora de brinquedos.
Diante das dificuldades de se tornar guardiã da sobrinha, Gemma faz a única coisa que sabe fazer: criar um novo brinquedo, a boneca androide M3gan, programada para instruir e proteger Cady em todas as situações. A ideia é minar medos primordiais causados tanto pela idéia de brinquedos ganhando vida quanto pelo conceito de uma inteligência artificial se voltando contra seus criadores. No primeiro campo, o rosto de silicone de M3gan muitas vezes lembra o de Chucky, especialmente quando se distorce em expressões de perversidade nada naturalmente associadas às ideias de brincadeira e infância.
O diretor Gerard Johnstone, cujo único longa anterior foi o pouco visto (mas elogiado) terror Housebound, sabe como dosar esses momentos. Ele encontra aliadas valiosas nas jovens atrizes contratadas para viver a boneca (Amie Donald foi a dublê de corpo, enquanto Jenna Davis proveu a voz de M3gan), usando seus súbitos movimentos animalísticos de forma eficiente para quebrar a normalidade dos ambientes domésticos e corporativos em que a história se passa. Ao lado do diretor de fotografia Peter McCaffrey, ele ainda insere brincadeiras visuais bem-vindas (atenção para momentos específicos em que a boneca é “fracionada” pela câmera, deixando apenas partes de seu corpo à vista) em meio à abordagem mais direta, menos formalista, da produção.
Por outro lado, o “despertar” de M3gan como inteligência artificial é menos Ex Machina ou Era de Ultron e mais Black Mirror, examinando como identidades construídas em extrapolações da cultura pop nas estruturas da internet não sustentam o peso da complexidade da vida real - e até por isso, frequentemente, geram reações violentas a ela. Não que a boneca seja uma cifra para os incels e blackpillers do mundo, mas é evidente que o equívoco imaturo no qual ela incorre ao tentar “proteger” Cady vem de sua experiência puramente artificial, estatística, algorítmica, do mundo.
Não à toa, o filme pausa nada menos do que três vezes para que M3gan entoe, com sua voz robotizada pelo autotune, algum sucesso pop que fale de superação ou otimismo. M3gan, o filme, jamais subestimaria o poder que a narrativa pop possui, sua capacidade de mobilizar o nosso pensamento e as nossas emoções em um contexto cultural específico - mas ele diz, de qualquer forma, que bradar uma declaração de resiliência embalada em melodia (digamos, “Titanium”, da Sia) não é o bastante para superar uma tragédia pessoal. Tudo isso enquanto se aproveita do fato que sua vilã é literalmente feita de titânio para melhorar a piada, claro.
Essa capacidade de jogar os dois lados do tabuleiro - incorporando acenos ao horror tradicional e momentos “memeáveis”, abordando o camp tradicional e o modernizando, satirizando a instrumentalização da criança como consumidor sem perder de vista que o alvo da zombaria deve ser o adulto - é o que faz de M3gan um pedaço de cinema pop simplesmente perfeito. Como todo filme de terror culturalmente definitivo, ele é esperto de um ponto de vista mercadológico (o gancho para a continuação é óbvio, e portanto há uma contenção estratégica do que é mostrado neste primeiro filme) tanto quanto é esperto de um ponto de vista narrativo.
O tempo será gentil com M3gan, mas também podemos, como público e crítica, escolher entender a sua genialidade logo à primeira vista. Parece muito mais justo, não?
Ano: 2022
País: EUA/Nova Zelândia
Duração: 102 min
Direção: Gerard Johnstone
Roteiro: James Wan, Akela Cooper
Elenco: Allison Williams, Ronny Chieng, Violet McGraw