O Mal que nos Habita faz da escatologia um exercício formal
Filme argentino encara nosso colapso como boas oportunidades de jump scares
Não parece coincidência que dois filmes cheguem quase ao mesmo tempo, um brasileiro e um argentino, respectivamente Propriedade e O Mal que nos Habita, exercitando cinema de gênero com os códigos mais frontais do filme de horror. É como se a preocupação com uma crônica do mal estar social - predileção da cinematografia desses dois países nos últimos 15 anos - já não bastasse para dar conta do que deixou de ser mal estar e se instalou de fato, neste quarto de século, como um colapso sem remédio aparente.
Diante desse cenário, que não vislumbra saídas de emergência civilizacionais, parece que resta ao cinema encarar o colapso como oportunidade de escatologia pura. O termo parte, nesse caso, da sua acepção teológica: escatologia como a doutrina que trata do destino final do homem e do mundo, seja esse final profetizado ou não. Na chave de gênero, Propriedade pega pra si o filme de invasão domiciliar, na linha Os Estranhos (2008); O Mal que nos Habita recorre ao mais atemporal terror de possessão. Ambos são essencialmente variações sobre a escatologia, e não pedem licença ou desculpa por fazê-lo.
No caso de O Mal que nos Habita, o “destino final” começa com aparente aleatoriedade, para depois ganhar - à medida em que o filme se acomoda em cima de diálogos expositivos - um caráter de profecia. A trama parte de uma possessão demoníaca numa fazenda no interior da Argentina, que inflama insatisfações e preconceitos entre colonos e indígenas, e depois as regras da possessão são colocadas para nós. Elas envolvem evitar ambientes com eletricidade, não falar o nome do demônio em voz alta, e principalmente não demonstrar medo diante dele. Como nos filmes de terror americanos similares, porém, seguir as regras não é garantia de sobrevivência.
Enquanto veículo de alegorias sociopolíticas, o cinema de horror e seus códigos acomodam muito confortavelmente as expressões da escatologia. Em O Mal que nos Habita, ela funciona melhor nos dois primeiros atos, em que o colapso se confunde com desconcerto. O mal pode se manifestar a qualquer momento, de maneiras igualmente imprevistas, e o filme aproveita ao máximo esse poder de sugestão, ao mesmo tempo que nos sonega explicações que julgamos essenciais para entender o mal. Elas, as explicações, não vão muito além de trocas de farpas e ressentimentos entre personagens; o mal pode vir de um adultério, um incesto, um abandono parental, uma deslealdade entre vizinhos, uma disputa de terras. O desarranjo social não permite identificar uma única explicação, e O Mal que nos Habita sabe muito bem como cooptar nossa disfunção - essa crise de verdades e sentidos que vivemos todos os dias - para maximizar a imprevisibilidade dos seus jump scares.
Não é por acaso que essa primeira porção do filme se pareça com Fim dos Tempos (2008) ao abraçar a escatologia, dado que, não custa lembrar, M. Night Shyamalan sempre conciliou o horror com o religioso nos seus filmes. O diretor argentino Demián Rugna não está tão interessado no caráter redentor dessas narrativas, porém, então o seu O Mal que nos Habita troca o desconcerto pela paralisia do colapso na segunda metade. É quando o filme se rende aos diálogos expositivos menos para justificar seus personagens e mais para afunilar suas entregas de catarse. As coisas ficam um pouco mais previsíveis nos sustos, talvez para que Rugna nos sinalize que no seu filme nada é tão aleatório assim, e que há sim uma ordem no caos - ou pelo menos uma lógica no castigo.
Na comparação, Propriedade é um filme mais potente nessas entregas, porque o diretor Daniel Bandeira trata as viradas do seu roteiro como uma escalada escatológica, e o longa brasileiro efetivamente termina com uma resolução apoteótica de “destino final”. Na medida em que passa a encarar literalmente o colapso social como sinônimo de paralisia, O Mal que nos Habita se conforma mais em colocar o gore para desfilar, meio passivamente, ao invés de reagir a ele a todo momento com fúria e indignação. No mais, fica difícil cravar quem é o mais político dos dois, porque em última instância o que temos são graus muito próximos de uma mesma desesperança.
O Mal que nos Habita
Cuando Acecha la Maldad
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