A decisão criativa mais acertada de Meu Tio José, animação dirigida por Ducca Rios exibida na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2021, é contar a sua história de resistência à ditadura militar pelos olhos de uma criança. A forma como o jovem protagonista, Adonias, vai aos poucos descobrindo a história de seu tio faz o filme adquirir um tom didático oportuno, que desvela as hipocrisias e os horrores da ditadura de maneira clara, mas também fundada em uma narrativa emocionalmente sólida, que personaliza esses horrores ao invés de abstraí-los como parte de um todo.
Adonias é um adolescente de classe média em Salvador em meados dos anos 1980, época em que seu tio é baleado pouco depois de voltar a morar com a família, vindo de um longo período no exterior. Como descobrimos, José (voz de Wagner Moura na fase adulta) estava em exílio, após fazer parte da luta armada contra a ditadura militar - mais especificamente, da Dissidência da Guanabara, famosamente responsável pelo sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 1969.
Conforme o protagonista ouve pedaços da história de vida do tio de vários familiares diferentes, e lida com seus próprios conflitos ideológicos na escola, Meu Tio José se mostra um filme de delicadeza insuspeita. Apesar dos diálogos que lutam entre a formalidade do português escrito e a fluidez do português falado, a obra de Rios se esforça bastante no que importa: a humanização dos personagens, a comunicação de suas angústias e histórias, conectando-os ao espectador de maneira bastante eficiente.
O visual do filme, enquanto isso, é cru, se aproximando de uma história em quadrinhos digital com suas linhas retas e seu persistente preto-e-branco - só às vezes quebrado por toques de cor, principalmente o simbólico vermelho-comunista. É uma escolha estilística firme, que torna as raras incursões do filme por território mais experimental ainda mais impactantes, especialmente nos “delírios” de Adonias, desenhados a giz e embalados por covers instrumentais de clássicos de Chico Buarque.
Lembrete valoroso dos perigos do autoritarismo, do policiamento ideológico, e do deterioramento dos pilares democráticos, Meu Tio José é um filme político, com ponto de vista sólido e admitido, mas também uma história sensível que usa os poderes do cinema como arte para apelar à humanidade de quem o assiste. Na maior parte do tempo, a aposta funciona muito bem.
Ano: 2021
País: Brasil
Duração: 88 min
Direção: Ducca Rios
Elenco: Wagner Moura, Tonico Pereira, Lorena Comparato