Filmes

Crítica

Nise - O Coração da Loucura | Crítica

Filme é baseado na história real da Dra. Nise da Silveira

08.10.2015, às 11H42.

Fruto de um olho talhado pelo cinema documental (olho este do diretor Roberto Berliner), capaz de favorecer a emoção a cada takeNise – O Coração da Loucura faz da observação, na chave da discrição, um dispositivo para reviver um formato há tempos mal empregado, às vezes até subestimado, pelo cinema brasileiro: o épico. E aqui, o formato se dá por trilhos inusitados, mais afeitos ao intimismo do que a uma grande narrativa: o veio da Medicina Psiquiátrica. Com uma embalagem de drama histórico, em sua reconstituição do Rio de Janeiro dos anos 1940, o longa-metragem faz um recorte (bem) demarcado na biografia da alagoana Nise da Silveira (1905-1999), médica responsável por uma rediscussão das práticas violentas no atendimento a pacientes com distúrbios mentais. Com Glória Pires no papel central, o longa se debruça sobre um período estimado em cerca de uma década no qual Dra. Nise é reintegrada ao serviço público e vai cuidar dos internos do Cento Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro. Lá, Berliner alinhava um estudo sobre vaidades vs. altruísmo.

Há uma correspondência direta de métodos de filmagem e de abordagem entre o filme de Berliner e um clássico nacional nas telas: Memórias do Cárcere (1984), de Nelson Pereira dos Santos. Ambos se instauram num ambiente de confinamento, ambos têm como eixo uma radiografia das micronarrativas de cada indivíduo que integram seus ambientes e ambos focam em um protagonista idealista. Como no longa de Nelson, há uma afirmação política sendo lapidada pouco a pouco, neste caso, a política dos valores médicos no atendimento e (sobretudo) no entendimento dos excluídos pela razão.

Em Memórias..., Graciliano Ramos (vivido por Carlos Vereza) buscava preservar seus ideais e alimentá-los nas trocas com presos de trajetórias pessoais mais acidentadas (por vezes mais desvalidas) que a sua e, a partir desses encontros, edificar uma nova sociologia do Brasil, afirmando diferenças. E isso era mostrado com um senso de percepção do tempo, observando as mudanças físicas e as acomodações trazidas pela passagem dos meses. Berliner faz o mesmo em Nise, preocupado em entender o rastreio feito pela personagem de Glória Pires - mais contida que em seu habitual, numa atuação que parece propositada e inteligentemente se apagar para valorizar o mundo à sua volta. Rastreio aqui se refere à maneira como a Dra. Nise deixar falar e faz escutar os ditos loucos ao seu redor, tecendo a partir dele uma colcha multicor de reflexão sobre o que é real, alinhavada pela arte, uma vez que o longa aborda o início do uso de terapias lúdicas, com pintura e escultura, entre os internos do Engenho de Dentro. O roteiro valorizou com sabedoria um desses pacientes, o pintor Fernando Diniz, interpretado com precisão por Fabrício Boliveira, que acaba se destacando por um drama pessoal capaz de juntar medo de rejeição e capacidade de expressar a dor do abandono em pinceladas instintivas.  

Com a confiança de ter uma atriz de rigor a seu lado, capaz de livrar o retrato de Nise de qualquer endeusamento prévio, Berliner faz sua épica sobre a guerra entre médicos (há colegas e até superiores da protagonista avessos a seus processos inclusivos com os ditos doentes) com o olhar atento às consequências deste conflito para a população de internados do hospital. Seu ritual de registro desses trâmites flerta com o cinema documental: a câmera flana entre os corpos sem se preocupar com uma hierarquia dos famosos. Ele abandona sem pestanejar o rosto de Glória para se concentrar em faces menos conhecidas sempre que estas possa acrescentar uma nova informação ao quadro de observação da rotina da clínica do Engenho de Dentro. E nisso, a câmera do fotógrafo André Horta é de um faro fino, canino, usando granulações e texturas capazes de gerar no espectador um distanciamento reflexivo: não é um teatro da loucura, é um filme que deseja fazer pensar (e faz) sobre práticas de Poder e sobre os meios de driblar esses poderes em prol do bem estar alheio.

00:00/01:00
Truvid
auto skip

Embalado na trilha sonora de Jacques Morelembaum (num dos acordes mais belos de sua carreira de compositor para as telas), o filme consegue mapear com o colorido da comoção as diferentes subjetividades restringidas pela loucura graças à ajuda de um elenco afiado de coadjuvantes. Simone Mazzer gravita na excelência no papel da interna Adelina, assim como Roney Villela e Cláudio Jaborandy abocanham um quê de choro e um quê de consternação ao retratarem respectivamente o pintor Emgydio de Barros e o escultor Lucio. Em paralelo, do aburguesado mundo dos “sãos”, surge a figura do crítico de arte Mário Pedrosa, que ajudará Nise a fazer a opinião pública brasileira enxergar a beleza que brota do inconsciente. O papel foi confiado a um ator de formação teatral, Charles Fricks, que valoriza o lado jornalista de Pedrosa, ao optar por interpretá-lo com um traço investigativo, de curiosidade aparente e de afirmações pontuais. Fricks coroa um elenco afinado em um filme de lágrimas, que marca a evolução de Berliner como ficcionista.

Seu pretérito perfeito documental está lá, preservadinho, sobretudo numa surpresa confiada ao epílogo de Nise – O Coração da Loucura, mas da prática da não-ficção, o cineasta evoluiu para uma dimensão de encenador do real, que procura entender as doenças dos homens sem jugá-los. A doença maior que seu longa aborda é a “intolerância”. E a profilaxia para derrotá-la se chama “esperança”, que poderia com perfeição ser o apelido de Dra. Nise.  

Nota do Crítico
Ótimo

Comentários (0)

Os comentários são moderados e caso viole nossos Termos e Condições de uso, o comentário será excluído. A persistência na violação acarretará em um banimento da sua conta.

Login

Criar conta

O campo Nome Completo é obrigatório

O campo CPF é obrigatório

O campo E-mail é obrigatório

As senhas devem ser iguais

As senhas devem ser iguais

As senhas devem ser iguais

O campo Senha é obrigatório

  • Possuir no mínimo de 8 caracteres

  • Possuir ao menos uma letra maiúscula

  • Possuir ao menos uma letra minúscula

  • Possuir ao menos um número

  • Possuir ao menos um caractere especial (ex: @, #, $)

As senhas devem ser iguais

Meus dados

O campo Nome Completo é obrigatório

O campo CPF é obrigatório

O campo E-mail é obrigatório

As senhas devem ser iguais

As senhas devem ser iguais

As senhas devem ser iguais

Redefinir senha

Crie uma nova senha

O campo Senha é obrigatório

  • Possuir no mínimo de 8 caracteres

  • Possuir ao menos uma letra maiúscula

  • Possuir ao menos uma letra minúscula

  • Possuir ao menos um número

  • Possuir ao menos um caractere especial (ex: @, #, $)

As senhas devem ser iguais

Esqueci minha senha

Digite o e-mail associado à sua conta no Omelete e enviaremos um link para redefinir sua senha.

As senhas devem ser iguais

Confirme seu e-mail

Insira o código enviado para o e-mail cadastrado para verificar seu e-mail.

a

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.