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No Intenso Agora | Crítica

João Moreira Salles usa o maio de 1968 para falar do Brasil pós-2013

09.11.2017, às 14H37.
Atualizada em 09.11.2017, ÀS 17H01

Figura importante não só do audiovisual nacional mas também da nossa imprensa, como fundador da piauí, João Moreira Salles não se furtaria a radiografar as transformações que marcam o país desde as Jornadas de Junho em 2013. Mas se havia documentado a eleição de Lula a quente, em Entreatos (2004), ele usa No Intenso Agora (2017) para falar de agitação social no Brasil de forma elusiva e evocativa.

O filme adota um tom confessional similar ao de Santiago (2007), e Salles volta a falar de sua infância e da intimidade da sua família de forma cândida, novamente beirando a culpa burguesa. No caso, ele encontra imagens feitas por sua mãe durante uma viagem à China em 1966, em plena Revolução Cultural maoísta, e a partir delas estabelece uma relação com outros movimentos intensos de transformação política e desobediência civil, na França, no Brasil e na Tchecoslováquia, em 1968, o famoso "ano que não acabou".

À parte essa relação do material de arquivo familiar com registros históricos públicos e conhecidos - uma relação no mais bastante tênue dentro do filme - No Intenso Agora é organizado didaticamente para ilustrar como a história se repete no Brasil de hoje. Há uma urgência juvenil nos primeiros gestos de revolta, uma satisfação no pertencimento (a alegria no protesto não escapa a Salles e é a pedra fundamental nesse filme que mistura testemunho emocional e análise política), em seguida um sequestro dessa urgência pelos outros atores sociais (de partidos políticos ao marketing de marcas) e a reação desmedida e militarizada das forças instituídas. No Brasil pós-2013 quanto na França de 1968, as conquistas sociais se turvam diante da opressão, e germinam escondidas num fenômeno jovem que talvez só floresça gerações depois.

Toda essa relação com o Brasil de hoje é autorizada porque Salles faz um filme cujo discurso busca englobar passado e presente de forma irrestrita. Quando aparece na tela a cena da saída da fábrica do filme de 1896 dos irmãos Lumière, por exemplo, Salles fala menos dos operários franceses de 68 do que de todo um sistema de organização do capitalismo que já vigora desde a Revolução Industrial até hoje - e que encontra no cinema um canal de registro bastante privilegiado, embora de forma inconsciente às vezes. O cinema nos mostra o mundo, ontem e hoje, e o recado não poderia ser mais claro: as imagens de No Intenso Agora valem muito para o século 20 mas seus sentidos se mantêm em 2017.

Essas imagens, no mais, estão subordinadas no filme ao discurso de Salles. O que vemos aqui é mais o articulista/jornalista em ação do que o cineasta, no sentido em que o texto tem prerrogativa sobre a forma como recebemos e entendemos as imagens de arquivo. "Isso a imagem não diz", repete Salles com frequência na narração, estabelecendo juízos de interpretação que reduzem a autonomia do espectador (e da própria imagem) de formar um sentido próprio. Se há uma marca que define o cinema de Salles é essa propriedade discursiva que ele detém sobre as imagens que organiza.

Assisti ao filme com alguns dias de diferença para outro documentário, Napalm, de Claude Lanzmann, exibido na Mostra de Cinema de SP, e é muito curioso como dois filmes parecidos podem ter resultados tão distintos a partir dessa postura que se adota diante das imagens e do poder do discurso. Lanzmann volta a Pyongyang meio século depois de ter visitado a Coreia do Norte numa excursão organizada após a guerra com os EUA. Assim como em No Intenso Agora, o passado e o presente dialogam de forma evocativa, mas do meio para o fim do filme Lanzmann basicamente reduz Napalm a um registro de talking head em que ele próprio relembra um encontro que teve com uma enfermeira coreana nos anos 1950. Seu texto e sua figura obviamente se apossam do filme, mas não por personalismo ou sequer por vaidade; ele reivindica o protagonismo de sua história porque traz consigo a memória e a força do relato.

No Intenso Agora não consegue preservar a mesma força, embora tente. No fim, embora fale bastante de memórias emocionais e da urgência do instante, o filme de Salles vale mais pela distância, pela didática reflexão sobre movimentos sociais, e nesse sentido é mais uma peça de análise do discurso do que um história de cinema de fato.

Nota do Crítico
Bom
No Intenso Agora
No Intenso Agora
No Intenso Agora
No Intenso Agora

Ano: 2017

País: Brasil

Classificação: 12 anos

Duração: 85 min

Direção: João Moreira Salles

Roteiro: João Moreira Salles

Onde assistir:
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