Bem encaminhado para se tornar um novo M. Night Shyamalan - ou seja, um cineasta que faz do mistério sua arma de marketing e eventualmente pode se tornar refém da expectativa que seus mecanismos de plot twist geram sobre o público - Jordan Peele não se faz de desentendido e, assim como Shyamalan, escolhe o terror com extraterrestres para ser seu terceiro longa de estúdio. A diferença fundamental é que Sinais (2002) é um filme sobre fé e Não! Não Olhe! (Nope) é um filme sobre evidências - pelo menos a princípio.
Não há religiosidade possível, ou crença numa insondável força maior, para os personagens negros de Peele, cuja maior herança nos EUA é justamente a desconfiança numa certa ordem natural e social das coisas. Por mais que a família de Mel Gibson atravesse dificuldades em Sinais, eles sempre terão a si mesmos, seu terreno, sua plantação, sua Igreja. Já os irmãos OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer), protagonistas de Nope, precisam se provar o tempo todo; a sua única posse, os cavalos treinados que eles emprestam para produções de cinema na Califórnia, vêm sendo negociados um a um num período de crise e luto, depois que o pai dos dois é morto misteriosamente no rancho da família por projéteis que caíram do céu.
Reparação histórica é obviamente a meta de Peele, e o texto de Nope deixa isso mais do que patente a partir do momento em que Emerald discursa ao pessoal de Hollywood sobre o jóquei americano que teve sua negritude apagada do primeiro registro fílmico de fotografias em movimento, no século XIX. Em busca de justiça, portanto, as evidências se tornam o próprio MacGuffin de Nope, e quando a ameaça dos céus paira sobre a cabeça dos irmãos eles só conseguem pensar nisso como uma oportunidade de provar seu testemunho. Em última instância, Nope está buscando recuperar a voz roubada do negro, e com isso reconciliar dois temperamentos opostos e complementares: o negro “amansado” da força braçal, OJ, cuja voz sai sempre baixa e vacilante, e a negra extrovertida, Emerald, cuja voz busca a validação do showbiz e por isso sai sempre teatral, “falseada”.
O comentário de Nope sobre o mundo do entretenimento vem bem a calhar num momento em que o cinema de horror negro - certamente alimentado pelo sucesso dos filmes anteriores de Jordan Peele, Corra! (2017) e Nós (2019) - reacende a discussão sobre o sofrimento negro reencenado na tela e a expiação da culpa branca. Em entrevistas, Peele faz questão de frisar essa preocupação, e o resultado está na tela em Nope na forma da recusa do vitimismo. Quando OJ (um personagem que ademais já carrega no nome o peso da culpabilização televisionada) literalmente se recusa a “participar” do filme, sussurrando um “nope” toda vez que o perigo se avizinha, ele já tem plena consciência do seu papel de vítima da História.
O que fazer com o vitimismo é uma questão que atravessa o filme e conecta o presente com os flashbacks. Toda a subtrama envolvendo a memória de Jupe (Steven Yeun) a respeito do trauma infantil trata justamente de transformar o vitimismo em mercadoria, inserida numa cultura cínica onde tudo é paródia e colecionismo. A jornada de OJ e Emerald vem, portanto, não apenas para produzir uma reparação histórica mas também para preservar a natureza transformadora do trauma, que na experiência trágica de Jupe nunca se resolveu além do oportunismo, do comércio. Cabe então aos irmãos protagonistas de Nope não apenas sobreviver ao horror mas também romper esse ciclo de alienação e desumanização do trauma.
Uma sacada de Jordan Peele é fazer caber esse discurso denso num filme que nunca perde de vista seu caráter de entretenimento. Nope não é disruptivo como Corra! e especialmente no clímax recorre a tropos mais funcionais de cinema de horror (o sacrifício do “velho sábio” na figura do cinegrafista, a entrada forçada do repórter do TMZ para ameaçar o grande plano), mas isso não desabona o filme, que afinal está tentando navegar de forma crítica em meio às convenções e aos clichês do gênero. Peele mostra que acredita nessas convenções, porque, no final das contas, só o otimismo da fabulação será capaz de remediar a cultura do cinismo em que os personagens de Nope estão tão inseridos.
É aí que as coisas começam a ficar bonitas de verdade: quando Nope percebe que a reparação e a evidência não serão suficientes para fazer justiça histórica ao povo negro, é preciso recuperar mesmo todo um sistema de crenças no cinema americano como um espaço mítico da oportunidade e do sonho. A evidência é matéria do presente, já o sonho é atemporal. O caminho que Jordan Peele escolhe para restabelecer o mito americano não seria outro senão se aventurar pelo western, seus cenários e arquétipos, e as estrelas no Firmamento nunca foram tão brilhantes quando no horizonte montanhoso de Nope pela fotografia em Scope de Hoyte van Hoytema.
As estrelas são obviamente uma marca do desconhecido no espaço sideral, e como tal podem ser entendidas como uma hostilidade num suspense de OVNIs, mas as estrelas também podem ser lidas como um espaço de infinitas possibilidades de triunfo - de estrelato, afinal. Ao mesmo tempo em que Nope renega o caráter desumanizado do showbiz, Peele se reconcilia com esse espaço de fabulação, tipicamente americano. Recupera-se o mito coletivo, enfim, num filme que nunca duvida da sua capacidade de narrar visualmente. A transformação de OJ é toda visual, seja nas camisetas que ele vai trocando ao longo do filme, seja na assombrosa consciência corporal de Daniel Kaluuya, assim como é visual o easter egg (um extracampo bem “shyamaliano” por sinal) do cavalo correndo atrás das ripas do celeiro, referência evidente ao jóquei das origens do cinema.
Ano: 2022
País: EUA
Duração: 130 min
Direção: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Elenco: Keke Palmer, Steven Yeun, Daniel Kaluuya, Keith David