O Auto da Compadecida 2 não nega a passagem do tempo e faz dela seu motor

Créditos da imagem: Conspiração/Divulgação

Filmes

Crítica

O Auto da Compadecida 2 não nega a passagem do tempo e faz dela seu motor

Guel Arraes volta a Ariano Suassuna disposto ao atrito

Omelete
4 min de leitura
26.12.2024, às 14H51.

Voltar a O Auto da Compadecida parece uma decisão óbvia e esperada. O filme de 2000 é o grande marco de popularidade do cinema da Retomada, e enquanto gênero esse tipo de comédia regionalista se permite atemporal - assim como muitas vezes Mazzaropi refez o Jeca em seus filmes, seria só o caso de reencontrar Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele) para mais uma sessão de pantomima e repente. Ao longo desse último quarto de século, os lançamentos de férias de verão se provaram uma janela renovada para a comédia popular brasileira no cinema, as chamadas Globochanchadas prosperaram no período, e O Auto da Compadecida 2 ocupa esse espaço agora, enfim, com autoridade.

Ao mesmo tempo, em época de saturação no streaming, parece que essa serialização já não dá conta de se provar por si só. Auto 2 começa com um curioso choque entre o acúmulo de narrativas e o imediatismo plastificado dos fundos digitais: a câmera-drone faz um plano-sequência para acompanhar um ônibus que chega a Taperoá, passando por curvas e saltos que evidenciam a computação gráfica, e estaciona diante da igreja onde Chicó recebe os turistas para contar - como parece fazer todos os dias, em troca de moedas - a história de como Nossa Senhora operou um milagre ressuscitando o lendário João Grilo. Como acontece sempre nas obras de Guel Arraes, a oralidade é o princípio e o fim; ela precisa dar conta do peso da história, do passado, porque o que vemos no cenário “falso” de Auto 2 é apenas a inclemência do presente: um lugar sem memória.  

Esse é o atrito primordial de um filme que faz dos ruídos, de alguma forma, o seu motor criativo. Saber se isso é proposital não importa tanto; Guel Arraes se coloca nessa situação ao escolher rodar Auto 2 num cenário digital com cronograma apertado, o que leva à decisão de prescindir do som direto e se apoiar na dublagem, realizada depois das filmagens. Isso deixa mais compreensíveis os diálogos carregados com a prosódia do sertão, cuja velocidade preserva o espírito combativo e envolvente do texto de Ariano Suassuna, mas sacrifica um certo naturalismo que o grande público já espera dos seus filmes “realistas”. O ruído dos diálogos falseados é mais um lembrete da artificialidade de Auto 2, ao lado do choque estético (este obviamente proposital) das imagens granuladas do filme de 2000 que entrecortam Auto 2 em um mosaico de flashbacks. 

Obviamente não há muito de realismo a se exigir de O Auto da Compadecida, como no geral há pouco realismo na arte sertaneja que escolheu a xilogravura para lhe representar nas artes plásticas, aplicando volumes a imagens chapadas de arte naïf para engrandecê-las. Auto 2 chega aos cinemas no mesmo ano da morte de J. Borges, mestre pernambucano desse formato, e de alguma forma o filme presta uma homenagem ao eleger para si um registro audiovisual mais maneirista da sua realidade. É compreensível que Arraes dê esse arranque, porque aos 70 anos, com uma carreira dedicada à comédia, parte investida em replicar o sucesso de O Auto da Compadecida - dirigindo Lisbela e o Prisioneiro (2003) e produzindo O Coronel e o Lobisomem (2005) -, Auto 2 já não ofereceria desafio. Por extensão, o filme espera do seu público médio um salto de fé, ou no mínimo um gosto pela novidade.

Isso não significa que Auto 2 abdique da familiaridade, inclusive o que dá fôlego para o filme é justamente a segurança conquistada na linguagem da teledramaturgia. (Convém lembrar que o filme de 2000 é uma versão condensada da minissérie da Globo feita por Arraes em 1999.) Estruturar o roteiro com reviravoltas entre núcleos e subtramas distintas - destaque para a presença de cena de Fabíula Nascimento e Luís Miranda, importantes adições ao elenco - opera essa familiaridade e dá ao filme um dinamismo do qual o texto ligeiro não pode prescindir, ao mesmo tempo em que preserva o comentário sociopolítico de Suassuna. É um respiro crucial, também, para desafogar o peso de metalinguagem que vem embutido na premissa do filme, uma trama envolvendo a volta de João Grilo que reconta o longa original.

Assim como o áudio dublado e a estética de tablado “plastificado”, a escolha por refazer a aventura de João Grilo com Deus e o Diabo pode dar ao público um sentimento de deslocamento. Auto 2 provavelmente não vai alienar as pessoas como um Coringa 2; seu impulso está mais próximo daquele de Beetlejuice 2, particularmente na forma como revisita e refaz situações mas agora com mais despojamento. O filme assume seu caráter extemporâneo, mas talvez esse lembrete da passagem do tempo e das coisas não seja exatamente o que a audiência procura, se entende o retorno de Auto da Compadecida só como um convite à nostalgia.

Nota do Crítico
Bom
O Auto da Compadecida 2
O Auto da Compadecida 2
O Auto da Compadecida 2
O Auto da Compadecida 2

Ano: 2024

País: Brasil

Direção: Guel Arraes, Flávia Lacerda

Roteiro: Guel Arraes

Elenco: Tais Araujo, Selton Mello, Luis Miranda, Humberto Martins, Eduardo Sterblitch, Fabiula Nascimento, Matheus Nachtergaele

Onde assistir:
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