Nicolas Cage em O Homem dos Sonhos (Reprodução)

Créditos da imagem: Nicolas Cage em O Homem dos Sonhos (Reprodução)

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Crítica

Em O Homem dos Sonhos, Nic Cage atravessa o ciclo de vida infernal de um meme

Filme de Kristoffer Borgli tem olho afiado para as vicissitudes do mundo cronicamente online

Omelete
4 min de leitura
28.03.2024, às 07H58.

Disse Nicolas Cage, durante a divulgação de O Homem dos Sonhos, que “não começou a atuar para se tornar um meme - mas, querendo ou não, era isso que o destino reservava a ele. Na mesma entrevista, o ator comentou que fez as pazes com o seu status de ícone da internet cinéfila, mesmo que em muitas ocasiões o preço dessa fama seja a ironia com a qual muitos de seus novos “fãs” apreciam as performances às quais se entregou de corpo e alma. Eu não tenho controle sobre isso”, proclamou o astro, comparando sua situação a de Paul, protagonista de O Homem dos Sonhos, um professor de meia idade ordinário em todos os sentidos, que vira celebridade viral após começar a aparecer nos sonhos de milhares de pessoas ao redor do mundo.

O paralelo é forte, e é óbvio que a performance de Cage aqui é muito guiada por uma exploração de humor autodepreciativo, temperada no comprometimento físico que marca sua carreira - mas há também uma diferença fundamental entre ator e personagem. Enquanto Cage pode olhar para tudo isso de uma posição terapeuticamente confortável, do alto de sua fortuna e na posição naturalmente isolada de astro de Hollywood, Paul precisa ser real, lidar com o mundo real, enquanto esse evento absolutamente irreal atravessa sua vida. E veja só que ironia: a geração das redes sociais não trata bem seus ícones quando eles deixam o ambiente cifrado das telas e se tornam pessoas de verdade.

Dirigido e escrito pelo norueguês Kristoffer Borgli, que virou um dos nomes do momento após o sucesso do seu igualmente provocante Doente de Mim Mesma na edição 2022 do Festival de Cannes, O Homem dos Sonhos se esforça valentemente para caminhar na linha entre o onírico e o realista, o “fora-da-caixinha” e o crível. As cenas de sonho e pesadelo, nas quais Paul vai rapidamente de figurante passivo a vilão caricato, dão ao filme sua potência estética. Com o diretor de fotografia Benjamin Loeb, seu parceiro no filme anterior, e o compositor Owen Pallett (A Caixa), cuja trilha cria um clima de teatro macabro, Borgli monta com habilidade o seu espaço liminar de sonho - um espaço que distorce a realidade pelo prisma do falso, na desconfortável mistura entre o ficcional e o verdadeiro, que passam ambos pelos nossos olhos todos os dias antes da hora de dormir.

Fora dessas sequências, no entanto, Borgli aposta na simplicidade da câmera na mão, passeando por cenários amplamente iluminados em um tom de comédia indie protocolar. Funciona porque o roteiro de O Homem dos Sonhos preenche este mundo ordinário de Paul com situações tão bizarras quanto as dos sonhos, ainda que de uma forma diferente. Enquanto, no imaginário dos outros, o pacato professor é parte de imagens distorcidas pelo fetiche, pela paranoia ou pela violência, no dia-a-dia dele próprio o fenômeno inexplicado que vira sua vida de cabeça para baixo cria situações cognitivamente absurdas - por que esses jovens estão subitamente com medo de mim, que nunca fiz nada a eles? Por que a Sprite quer fazer um comercial comigo, mas ninguém está interessado no que eu tenho a dizer?

E é a partir dessas dissonâncias cognitivas que O Homem dos Sonhos estabelece o paradoxo ainda mais fundamental que guia a contemporaneidade, como conceituada por Borgli e seus colaboradores. Em um mundo tão obcecado com “autenticidade” na arte que lançar um artista que não escreve as próprias músicas virou um crime imperdoável, que cobra tanta assertividade e proatividade dos sujeitos inseridos no contexto do mercado de trabalho e mesmo nas relações interpessoais que não são mediadas pelo capital, é justamente o falso e o passivo que se tornaram o lugar seguro onde nos escondemos sempre que algo ou alguém faz com que nos sintamos ameaçados. 

Isso é um problema, é claro, porque pessoas são de verdade, e fazem coisas. O Homem dos Sonhos traça o ciclo de vida infernal do meme que Nicolas Cage nunca vai ser, porque astros de Hollywood (não os da geração dele, ao menos) não precisam ser de verdade. De fato, para todos os efeitos de sua face pública, eles não precisam ser nada mais do que uma imagem. E Paul, por outro lado, precisa, até porque não sabe como não ser. A graça e a tragédia do filme, da frustração expressa na performance de Cage, da ternura machucada de Julianne Nicholson como sua esposa, do final que se configura tanto como um ato de rendição quanto como um ato de rebeldia, é ver o que acontece quando o sonho da contemporaneidade se choca com a realidade de quem vive nela.

Nota do Crítico
Ótimo
O Homem dos Sonhos
Dream Scenario
O Homem dos Sonhos
Dream Scenario

Ano: 2023

País: EUA

Duração: 102 min

Direção: Kristoffer Borgli

Roteiro: Kristoffer Borgli

Elenco: Nicolas Cage, Dylan Baker, Julianne Nicholson, Michael Cera, Tim Meadows

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